Diário de Viagem: anos de 1996 e 1997

JAPÃO (12.10.1997) – Suzuka, Brasil

O GP do Japão sempre foi um dos mais complicados para os jornalistas do mundo inteiro, que atravessam o planeta para chegar à pequenina Suzuka, a mais de 400 km de Tóquio. Há a barreira da língua, quase intransponível. É lenda a história de que muitos japoneses falam inglês. Ninguém fala. Nos hotéis, via de regra, os funcionários sabem, no máximo, contar até dez e dizer good morning.

A fonética do idioma é muito diferente e o falar inglês torna-se uma tarefa penosa para a maioria dos japoneses. Num lugar como este, então, é virtualmente impossível se comunicar. Se não bastasse, há as distâncias e a precariedade de acomodação. Por isso, há anos que é assim, a imprensa se espalha por cidades como Tsu e Yokaishi, a uma hora e meia, de ônibus, do circuito.

Azar de todo mundo, menos dos brasileiros. Depois de uma década, descobrimos, terça-feira, que em Suzuka está a mais numerosa comunidade brasileira do Japão, com cerca de cinco mil descendentes trabalhando nas fábricas da região. São 200 mil no país. Aqui há açougues, pastelarias e restaurantes onde se fala português. A turma faz baile de carnaval e vai em caravana a Nagoya assistir, por exemplo, a um show de Leandro & Leonardo.

Eu estava com uma reserva em Tsu, mas nem vi a cara do hotel. Na chegada, no aeroporto, conheci o Giba, um rapaz de Curitiba que trabalha para uma empreiteira que coloca brasileiros nas fábricas locais. Há seis anos no Japão, ele já nem passa mais por estrangeiro. Fala japonês sem sotaque, assim como Cristina, sua mulher, e a Hitome, sua filha, uma linda garotinha de sete anos. Giba me convidou para ficar em sua casa, a um quilômetro da pista. Aceitei.

Ganhei uma família no Japão. A F-1 tem dessas coisas. O Giba, o Arnaldo, seu irmão, a Vânia, que é cunhada, os amigos David e Farol (se chama Renato, mas ninguém o conhece pelo nome aqui), o Daniel, que é gerente do boliche da cidade… Há cinco dias eles praticamente não dormem, mudaram seus turnos de trabalho para, durante o dia, fazer companhia a mim e aos outros quatro brasileiros que estão aqui para cobrir a corrida.

Já tenho até a chave de casa, faço meu café da manhã e vou de bicicleta para o autódromo. À noite,
assisto à novela das oito e ao Jornal da Globo na TV. Vi até o jogo do Vasco com o Cruzeiro, sempre com um dia de atraso, mas o que é um dia, afinal?
Com eles, descobri os fascínios do Japão e seu dia a dia. Não há espaço neste texto para contar tudo que já aprendi e passei a entender sobre este país, o japonês e seus descendentes, em tão pouco tempo. Parece que vivo aqui há anos.

Tudo, da comida à educação, das regras de trânsito aos sistemas de saúde, das reverências ao gesto simples de tirar os sapatos ao entrar em casa, tudo é particular e diferente do nosso jeito ocidental de encarar o mundo e a vida.

Não é a primeira vez que venho ao Japão. Mas pela primeira vez tenho a chance de viver o país. E, mais uma vez, constato que o brasileiro, esteja onde estiver, é de uma generosidade do tamanho do universo, tenha ele olhinhos puxados ou não. Você, que me lê agora, talvez não faça ideia do que é ter um amigo como o Giba do outro lado do mundo. Paga tudo, as horas intermináveis em aeroportos e aviões, a distância de casa, os dias longe dos amigos e da família, aquilo que a F-1 exige daqueles que a seguem.
Arigatô, Japão.

LUXEMBURGO (28.09.1997) – Bazar do Gomes

Acho que ainda vai dar tempo, só vou embora segunda-feira. Mandei um anúncio para os classificados do jornal local, uma gazeta de Nürburg, propondo a troca de algumas mercadorias. Minhas luvas de lã novinhas em folha por uma jarra de cafeteira, que a minha quebrou. Um gorro, igualmente de lã, marrom-café, por uma caneca de cerveja. Pode ser usada.

Comprei também um cachecol, que não usei, claro, e aceito em troca dois potes de geleia, ou então uma lata de Ovomaltine nova. As ceroulas e as duas camisetas térmicas, isso vai num pacote só, estou trocando por cartões postais ou então uma coleção de selos, que nem precisa ser muito numerosa.

Pelas botas com forro de pele, estas um pouco mais caras, espero conseguir um despertador, que pode ser de campainha, ou uma vitrola, que anda difícil de arranjar. As pastilhas para garganta, o protetor dos lábios e os comprimidos para gripe, troco por três tubos de pasta de dente, sabor menta.

Como no ano passado, cometi a burrada de achar que faria frio neste fim de semana. Esta região da Alemanha é uma terra de pinguins no início do outono, pelo menos foi assim há dois anos, quando desembarquei em Nürburgring de camiseta e bermudas, vindo de Portugal, e congelei.

Desta vez, preparei-me. Em 96 exagerei, confesso, porque a corrida foi disputada em abril, estava quente. Mas neste ano não tinha erro, final de setembro, o Villeneuve disse assustado, semana passada, que ia fazer zero grau, com um pouco de sorte até neve a gente veria.

Comecei a desconfiar no começo da semana, depois de três dias em Viena. Fez muito calor e só usei a jaqueta creme de teimoso, para justificar a compra (esta vou levar para o Brasil e não foi anunciada). Na terça-feira, vi uma reportagem na TV direto de Nürburgring, a torcida chegando para acampar em mangas de camisa, sandálias, sol e um céu azul de doer. Alertei o Galvão Bueno, que estava no mesmo hotel, mas era tarde, ele já tinha comprado uma coleção de suéteres e dois pares de luva, além de um casaco de couro.

Não sei se vou conseguir minhas trocas. Nesse calor aqui, derreto se usar luvas, gorro e cachecol. Ser não puder me desfazer de nada, podem se preparar que farei um bazar em São Paulo. O Galvão, parece, está pensando em promover um no Rio, também. Preços módicos, venha correndo.

ÁUSTRIA (21.09.1997) – Vaquinhas e leite fresco

Sou a favor de pelo menos uma corrida nova por ano. Estou adorando a Áustria. Estive por aqui no mês passado, é verdade, visitando a Salzbourg de Mozart e a requintada Viena dos palácios e das valsas. Mas Zeltweg é outra história, claro, um vilarejo de dez mil habitantes. E embora não tenha castelos, nem teatros, é um cenário que faz bem para a alma.

Montanhas, muito verde, vaquinhas pastando na entrada do autódromo enquanto lá dentro máquinas de milhões de dólares aceleram os sonhos de seus pilotos… Sol, céu azul, poluição zero, gente simpática e louca para agradar, afinal é a primeira prova por estas bandas nos últimos dez anos. Festinhas, jogos de dardo no meu hotel Schweizerhof, uma pensão meio vagabunda sem banheiro no quarto, mas não faz mal.
É um GP rural, como Nürburgring ou Spa, o verdadeiro espírito da Fórmula 1. Milhares de pessoas de todos os pontos da Europa montam em seus trailers, armam suas barracas e passam três dias se conhecendo, tomando cerveja, comendo salsicha e vendo carros de corrida nas horas vagas.

De manhã, todos os dias, antes de vir para a pista, paro numa fazendinha que vende leite tirado na hora, forte, saboroso, vital. Custa dez schilings o copo, menos de um real, e é uma delícia. Dá vontade de ir a pé para o circuito, colocar um chapéu de feltro verde e meias brancas até os joelhos, suspensórios de tirolês, são apenas três quilômetros, o que só não faço porque tenho que carregar muito equipamento.

Mas é uma delícia, mesmo sem as caminhadas, que um dia vou fazer. Corrida nova, circuito desconhecido, paisagens diferentes, isso tudo é um combustível não só para nós, jornalistas, como também para pilotos e equipes, cansados de visitar sempre os mesmos lugares. Até a briguinha entre Zeltweg e Spielberg é legal. Spielberg é uma vila de dois mil pacatos habitantes em cujos limites foi construída a pista. Zeltweg, vizinha, batiza informalmente o autódromo porque em 63, quando a F-1 fez sua primeira corrida na região, o circuito ficava mesmo na cidade, num pequeno aeródromo.

Consagrou-se o nome, e o pessoal de Spielberg não gosta muito da ideia. Essas historinhas, pequenos casos, querelas entre aldeias, essas coisas fazem da F-1 um espetáculo mais humano. A Áustria é uma beleza, assim como a Holanda, a Bélgica, o interior da Europa, a Europa que não é Londres, Paris, Milão ou Barcelona. Nessas horas, trabalhar nesse negócio aqui dá gosto.

E ainda tem a corrida, hoje. Legal. Depois dela, volto ao velho Schweizerhof. Tenho um match de dardos importante, esta noite. Adotei um estilo irlandês do Ulster, disseminado em Belfast, de lançar os meus em parábola, buscando sempre o triplo vinte. Se você não faz ideia do que é isso, aprenda a jogar dardos e conversamos depois.

ITÁLIA (07.09.1997) – Regime, só segunda-feira

Comecei um regime segunda-feira passada. Como é sabido, segunda-feira é o Dia Universal do Começo do Regime, e a última segunda foi ainda mais apropriada, porque era dia primeiro. Nada muito grave. Adquiri uma barriguinha indesejável nessa vida de aeroporto-hotel-autódromo-restaurante e resolvi eliminá-la da maneira mais fácil: fechando a boca.

Foi tudo bem no primeiro e no segundo dia, grelhado com alface no almoço, sopinha à noite. Mas aí embarquei para a Itália, onde pude constatar, como se isso fosse alguma novidade, que é impossível fazer dieta num país como este.

Primeira noite, jantar no restaurante do hotel, porque já era tarde e ia ser difícil encontrar alguma coisa aberta. Na Itália, não tem jeito. Tem que comer entrada, primeiro prato, segundo prato, sobremesa e café expresso, o melhor do mundo. E o diabo do hotel tinha um restaurante excepcional.

Quando você vier até aqui, saiba que pedir apenas um pratinho de penne ou tortellini solitário ao garçom é quase uma ofensa. Como assim? Nem um carpacciozinho? Um escalope de vitela com funghi? Não quer mesmo um tiramisù? Um risoto no champanhe?

Come-se demais, bem demais, digo, na Itália. E não dá, igualmente, para radicalizar na bebida, aquele negócio de quem faz regime, só água mineral, sem gás. Vinho italiano é muito bom. E álcool engorda, todo mundo sabe. Que venha o vinho, fazer o quê?

Resultado: suspendi meu regime temporariamente. O próximo dia primeiro que cai numa segunda-feira é em dezembro. Tempo suficiente para que eu me recupere de quatro dias de Itália. Porque anteontem à noite fui a uma trattoria espetacular, La Bucca del Lupo, e, como no hotel, devorei três pratos, sobremesa e, de quebra, um digestivo, uma sambuca, nada muito pesado.

Hoje à noite está agendada uma visita ao Bice, onde, dizem, come-se de joelhos, de tão boa é a massa. Ainda tentei evitar as pastas, que também engordam, tudo que é bom engorda, e fui a uma churrascaria ontem, isso mesmo, fui comer carne no Porcão, dos mesmos donos daquele rodízio no Rio. É legal, dá para tomar caipirinha e os garçons são todos do Paraná ou do Rio Grande do Sul. Além do mais, as recepcionistas, brasileiras, são muito bonitinhas. E carne, como também é sabido, não engorda. A não ser que você coma maionese, farofa e banana à milanesa junto. Mas, estando em Milão, como não comer banana à milanesa? Acho que engordei. Pra falar a verdade, abusei um pouco do cupim, foi isso.

BÉLGICA (24.08.1997) – Casacos belgas

Tenho uns dez casacos em casa, contando jaquetas, “trench-coats”, capas de chuva e blusões em geral. Oito deles comprei aqui, em Spa-Francorchamps, num shopping improvisado em barracas na entrada do circuito. O problema é que sempre esqueço de trazer agasalhos, as corridas na Europa são realizadas sempre no verão do Hemisfério Norte, enfim, é problema meu se sempre esqueço que estou indo para Spa.
E a Bélgica é a Bélgica. Chove todos os anos, não tem erro, se houver uma única nuvem sobre a Europa, ela estará sobre a Bélgica, ou, mais precisamente, sobre Spa e Francorchamps, duas cidadezinhas simpáticas ligadas por uma estrada que faz parte de uma pista de Fórmula 1.

E faz frio, também. Por isso, todos os anos compro um casaco qualquer aqui, por mera questão de sobrevivência. É rotina. Saio do meu chalé (corrida meio campestre, essa aqui) congelando, debaixo de um toró, chego ao autódromo e compro a primeira coisa que encontro capaz de me aquecer um pouco.
Teve um ano em que essa primeira coisa foi uma jaqueta da Pacific Racing, o que afinal acabou virando uma peça de coleção, já que a equipe nem existe mais. Me contaram que foi a única vendida até hoje, porque naturalmente ninguém é louco de comprar sequer um boné da Pacific, o que dizer de uma jaqueta, ainda mais de lã grossa, daquelas que pinicam.

Tenho também uma capa com a foto do Nigel Mansell sem bigode nas costas, mas essa, confesso, usei um dia só e tentei trocar porque não sou palhaço. A moça que vendeu não aceitou de volta. Argumentei que não sabia da foto e ela me mandou procurar o Procon. Tive que gastar uns francos belgas a mais para comprar algo menos ridículo, um casacão preto, meio antiquado, com as cores antigas da Lotus, preto e dourado. Fiquei parecendo um agente funerário, mas era melhor que o Mansell sem bigode.

Neste ano, quando fazia a mala às pressas para embarcar rumo a Frankfurt (e de lá, de carro, 300 km até Spa), lembrei que estava indo para a Bélgica, e não para Mônaco ou Magny-Cours, lugares quentes, ensolarados. Malandrão, catei o casaco piniquento da Pacific, o fúnebre da Lotus, uma jaqueta (essa eu nem lembrava que tinha) azul turquesa da época da Leyton House e um guarda-chuva sensacional, ele não abre direito, mas tem Andrea Moda escrito num dos cantos. Cheguei aqui armado até os dentes.

Está um calor dos diabos. Mesmo na sexta, a chuva que caía vinha quente do céu, dava para fazer chá. Ontem, sábado, fez sol o dia inteiro. E eu não trouxe camisetas, nem bermudas, nem bonés, nem mesmo um tênis — só botas. Fui obrigado a comprar tudo nas barraquinhas, até uma T-shirt com o Villeneuve estampado. Perguntei se não tinha alguma pré-cabelo amarelo, mas não tinha. Ainda bem que aqui ninguém me conhece.

HUNGRIA (10.08.1997) – Meu relógio soviético

Minhas duas últimas semanas têm sido uma espécie de viagem no tempo. Como resolvi ficar na Europa depois do GP da Alemanha, escolhi destinos da antiga Cortina de Ferro para matar a vontade de brincar de espião dos livros de John Le Carré. É preciso certa imaginação, claro, para enxergar o Muro de Berlim onde não existe mais nada dele. Ou, então, para se sentir perseguido por um agente da Stasi no metrô de Leipzig, ou numa estação de trem cinzenta em Dresden.

A Hungria, onde estou, já não me fascina tanto. Estive aqui pela primeira vez em 91, quando os regimes socialistas caíam feito um castelo de cartas, e lembro que ainda deu para ficar encantado por alugar um Lada e ver milhares de Trabant circulando pelas ruas de Budapeste.

Isso tudo é passado, porém. Hoje virou bagunça, quando se olha para a Europa Oriental com olhos nostálgicos de um tempo em que ser comunista tinha lá seu charme. Um húngaro me contou que o primeiro comércio ocidental aberto em Budapeste foi uma loja da Adidas, e que no dia da inauguração as filas davam voltas no quarteirão. É ou não é o máximo? Agora tem um McDonald’s em cada esquina.

De qualquer forma, senti-me na década de 60 ao tentar entrar na Tchecoslováquia sem visto no passaporte. OK, República Tcheca, vá lá. Estava num trem sombrio quando os policiais tchecos, rudes e gelados como rochas, me mandaram descer na estação seguinte, ainda em território alemão. Adorei. Tirei uma foto do lugar, saído de filme preto e branco, uma estação caindo aos pedaços nos confins do que era a Alemanha Oriental.

Não fui a Praga, em consequência, mas não me importei. Àquela altura, já carregava na mala, de um jeito meio clandestino, confesso, duas preciosidades que comprei de um camelô em Berlim — e que felizmente os guardas não encontraram, creio que teria problemas para explicar sua aquisição: um pedaço do Muro, que ele me garantiu ser verdadeiro e veio até com um carimbo que confere certa autenticidade à peça, e um magnífico relógio de parede. Este, segundo o vendedor, é russo e estava num antigo submarino nuclear do Pacto de Varsóvia. Funciona à corda, mas ele me mandou ter cuidado. Há chances de que algum tipo de radiação ainda possa ser emitida. Bárbaro, não vejo a hora de contar minhas aventuras aos amigos quando voltar a São Paulo, em noites regadas pela boa vodca da terra de Lenin.

ALEMANHA (27.07.1997) – Os sem-parking

Ligo para São Paulo e me informam, sexta-feira, que o país está numa confusão danada, passeatas por todos os cantos, sem-terra, sem-teto, sem-metrô, sem-carro-importado, sem-salário, sem-emprego, sem-nada e sem-tudo. Nada mais justo, tratando-se de Brasil. E nada mais antigo, afinal não saí daí há uma década, mas no meio da semana. Já sabia das passeatas e dos movimentos, e quero mais é que as pessoas se manifestem mesmo, viver no Brasil está ficando impossível.

Vou passar 20 dias na Europa, emendar duas corridas, Alemanha e Hungria, e pelo menos terei alguns momentos de paz. Nada de Sérgio Motta, FHC, greve da PM (é um absurdo como os policiais ganham mal), Xuxa, Zagallo, Fantástico, Celso Pitta, precatórios e venda de votos. É incrível como o Brasil tem coisas ruins, também. Autoexílio. Faz bem, de vez em quando.

Sei que daqui a alguns dias vou sentir falta de tudo isso. Pensarei no caso quando estiver rodando com meu Audi alugado por estradas sem buracos, ou enquanto estiver parado no trânsito com o vidro aberto e meu relógio para fora da janela, sem medo de ser assaltado. Ou ainda ao caminhar pelas ruas de Viena, ao atravessar na faixa de pedestre, sem me preocupar em ser atropelado por um motoqueiro alucinado sem placa.

Provavelmente, daqui a duas semanas, estarei morrendo de saudades das passeatas na avenida Paulista e vou propor um movimento entre os jornalistas que cobrem a Fórmula 1, que andam muito aborrecidos com algumas medidas tomadas pela organização das corridas. Desde o ano passado, empurram-nos, os jornalistas, para estacionamentos cada vez mais distantes das salas de imprensa.

Os espaços estão sendo ocupados pelos equipamentos da TV digital do Bernie Ecclestone, o que faz de nós um grupo de “sem-parking”, uma nova categoria massacrada pelo poder econômico. Somos submetidos a uma ditadura de estacionamentos longínquos e “vans” que nos levam até os autódromos. As salas de imprensa estão sendo rigorosas também com seus horários, até as linhas telefônicas são cortadas no encerramento do expediente. Somos “sem-linha”, também.

Faremos uma passeata em Budapeste, na hora da largada, pelo meio dos carros parados no grid. Carregaremos faixas e cartazes pedindo nossos direitos. Aceitamos deixar nossos carros longe, desde que tenhamos sanduíches e cafezinho de graça. Queremos ser bajulados, também. Bonés, camisetas e chaveiros das equipes em cotas quinzenais. Hotéis mais baratos e quartos individuais. Jantares e festas em todas as corridas. Reivindicações básicas, sem negociação.

Chega de ser explorado. É preciso alguma vantagem para cobrir Fórmula 1, algo mais do que aviões e aeroportos. Queremos mordomias e adicional de periculosidade para ter que aguentar o mau-humor dos pilotos e dirigentes o ano inteiro. Vou-me transformar num líder entre a imprensa. O poder que se prepare. Jornalista unido jamais será vencido, como diz meu amigo aqui do lado, com a camiseta do Che Guevara e um passaporte finlandês. “É preciso fazer alguma coisa, porque o mundo está muito chato”, ele diz. Tem razão. Vou sugerir que se mude para São Paulo.

INGLATERRA (13.07.1997) – Diário de Viagem

Pela primeira vez desde que acompanho a Fórmula 1, abri mão de ficar num hotel para a corrida de Silverstone. Tinha até um muito legal em Northampton, a 35 km da pista, eu conhecia a recepcionista e o cara que fazia minhas torradas pela manhã. E o gerente, que sempre reservava um quartinho com janela para a rua principal da cidade, quarto antigo, com carpete no banheiro.

Mas era um inferno chegar ao autódromo, embora no ano passado eu tenha descoberto um caminho pelo meio das fazendas que me tirava da A43, a “Estrada para o Inferno”, como a chamava o cantor Chris Rea, um fanático por Fórmula 1. Reza a lenda que ele compôs a canção “Road to Hell” parado num congestionamento-monstro para Silverstone, anos atrás. Sempre foi assim: 150 mil pessoas vão para a pista de carro, não há outro jeito, pela mesma estradinha, a A43. Tempo médio para percorrer 30 km: três horas. Um inferno.

São estranhos esses ingleses, porque há outros caminhos, mas eles não sabem. Ainda bem, porque assim eu continuo pegando pista livre nas minhas fazendas. E de onde me hospedo neste ano, não são mais do que 15 minutos. Loucos, esses ingleses. Adoram um congestionamento.

Mas não é sobre o inferno da estrada que quero falar, mas sim de Samantha. Samantha é a garotinha que dorme no quarto onde estou. Aluguei, com uns amigos, uma casinha adorável em Towcester, a 8 km da pista. Casinha inglesa, de tijolinhos e quadros de cavalos e caçadas nas paredes. Típica, com lareira e janelinhas brancas e grama muito verde.

A família nos deixou a casa e a mim coube o quarto de Samantha. Ela deve ter uns oito anos. Seu quarto tem papel de parede decorado com ursinhos, quadrinhos do Dumbo e dos 101 Dálmatas e um urso Puff (lembram?) sentado numa cadeira.

Vi o retrato de Samantha na geladeira. Acho que nunca vou conhecê-la pessoalmente, mas queria dizer a ela que adorei seu quarto de criança. Cometi até a indiscrição de abrir a primeira gaveta da sua cômoda branca laqueada, sabe como é, a gente conhece as pessoas por seus objetos e hábitos, e embora seja muito nova, é claro que Samantha tem seus hábitos.

Ela tem um walkman colorido, por exemplo, e vários elásticos de todas as cores para prender seus cabelos lisos e negros. E adora lápis coloridos, tem uma coleção imensa. Não abri o guarda-roupa, até porque já vi seu uniforme da escola na foto, saia azul-marinho, camisa branca e um lencinho vermelho no pescoço. E não fica bem espiar as roupas de uma mocinha, convenhamos.

Estou dormindo na sua cama e com seu travesseiro. Todos os dias, de manhã, abro as cortinas para o sol encher de luz aquele lugar sagrado, um quarto de criança, que faz-me sentir um garoto de novo. Tenho muito a agradecer a Samantha. Ganhei uma nova amiga, e vocês não fazem ideia do que é isso quando se viaja tanto, quando é necessário conviver com desconhecidos nos lugares mais malucos do mundo para sobreviver.

Vou deixar um presente para ela. Li, numa cartinha que ela escreveu para o pai, provavelmente um trabalho de escola (está colada na parede da cozinha, a cartinha), que ela adora o inverno porque gosta de fazer bonecos de neve e porque gosta de sua casa quentinha, mesmo quando faz muito frio lá fora. Nada mais singelo e encantador. Não posso lhe dar um boneco de neve, Samantha. Mas vou achar alguma coisa para te agradecer.

FRANÇA (29.06.1997) – Banho de supermercado

Eu já não tinha mesmo muita roupa para trazer à França. Na semana retrasada, tungaram minhas malas em Miami e fiquei sem lenço, sem documento, sem calças e sem meu canivete suíço. Mas tudo bem, porque na Europa é verão, e neste fim de mundo faz muito calor nesta época do ano. Umas duas bermudas, uma calça jeans, a que sobrou, com um remendo de festa junina nos fundilhos, algumas camisetas e passaria tranquilo pelo GP da França até recompor meu guarda-roupa.
Bem, só não está nevando. Chove o tempo todo e quando a temperatura passa dos 15 graus é motivo de festa. Cadê o verão? E o inverno, no Brasil? Saí de São Paulo com 30 graus! O que está acontecendo com o mundo?

Claro que as bermudas não serviram para nada, nem para dormir. E por isso passei a manhã de sexta-feira num hipermercado comprando roupas. Nada de butiques caras, porque se me assaltarem de novo eu peço licença e mudo de planeta. Uma muda de roupas para a agitadíssima Magny-Cours não custaria tanto assim, afinal.

Aí apareci no autódromo de jaqueta nova e me perguntaram se tinha comprado na GAP, e esse suéter, é de Paris? Falei que tomei um banho de loja no Carrefour e não acreditaram. Devia ter dito que era Giorgio Armani, e ficava com fama de bacana. Não faz mal. Gostei das minhas roupas de supermercado, são quentinhas e aconchegantes. Aproveitei para adquiri um gravador novo, que o meu também ficou com os amigos da Flórida. E comprei até sabonetes, que os daqui duram mais que os daí.

Tirando isso, o tempo, o frio, a chuva, as botas molhadas, a lama e o meu carro que não anda (motor turbo diesel, faz um barulho dos diabos, mas acelera menos que uma lambreta), o resto está OK. A França é um bom país, o segundo melhor do mundo para se viver, segundo a ONU, e no ano que vem tem Copa do Mundo aqui. É um ótimo lugar para se fazer uma Copa, bem melhor que os Estados Unidos.

Problema mesmo, só o trânsito de Paris. Para vir até aqui, é preciso atravessar a cidade até chegar à autoestrada. Trinta quilômetros em uma hora e meia. E a gente reclama de São Paulo. Só que em Paris, olha-se para um lado e vê-se a Torre Eiffel ao longe; forçando a vista, as luzes de Champs Elysèes. Em São Paulo, tem o rio Tietê de um lado e um Singapura do outro. É uma diferença considerável. No mais, são três horas de asfalto liso e estradas sinalizadas, vilarejos com floreiras nas janelas e campos de trigo, girassóis e milho. Isso tudo descansa a vista e a alma. Esqueço até o frio e a chuva, Miami é outro mundo, o Brasil também.

CANADÁ (15.06.1997) – O melhor país do mundo

Eu ia contar hoje a epopeia, talvez epopeia seja um exagero, a aventura aérea para se chegar a Montreal, quarta-feira passada. Até Nova York, é um voo normal, avião grande, horas intermináveis, comida meia-boca, filme que já vi, nada de novo. É preciso parar nos Estados Unidos para vir ao Canadá, pelas companhias aéreas brasileiras. No aeroporto JFK a gente pega uma conexão, normalmente de empresas canadenses.

Até aí tudo bem. Passaporte, bagagens, alfândega, check in. Mas havia uma informação, não confirmada, de que o avião que a gente ia pegar até Montreal não era propriamente um Boeing. Somos um grupo de jornalistas brasileiros, que nos anos Senna tinha mais de 20 profissionais. Quarta-feira, na fila do check in, éramos cinco. Dois já estavam no Canadá e outro pegou um carro em Nova York e foi dirigindo.

Um deles morre de medo de avião pequeno. E lá fomos nós para o portão de embarque. Não havia avião nenhum no “finger”. Lá embaixo, um teco-teco de 34 lugares, impulsionado a hélice. Eu, que não tenho o menor problema com aviões, iniciei o terrorismo psicológico. O tempo está ruim (estava um sol danado, na verdade), esse negócio é antigo, tem uns 30 anos, olha só o nome do avião!, Saab-Scania, esses caras só fazem carro e caminhão, não vamos chegar nunca!

E o cara (não vou dizer o nome) não queria embarcar. Vamos de carro. Vamos mudar o voo. Nada disso, respondia eu, se formos vamos todos juntos. No mínimo, dá manchete de jornal. Cinco jornalistas desaparecem nos Grandes Lagos. Dá até Jornal Nacional. Lá dentro, um charutinho, eu, nanico, batia a cabeça no teto. O medroso queria tirar as malas do bagageiro. Não tem malas, avisei. Vão em outro avião, por causa do peso.

O pânico era absoluto. Quando eu vi o piloto, avisei ao medroso que conhecia o cara, era motorista de táxi em Miami no ano passado. Antes, ao passar pelo portão de embarque, chamei a atenção para o fato de a funcionária ter me desejado boa sorte, em vez de boa viagem. Ele quase morreu.

O voo foi tranquilo. Nem sacodiu. O medroso só ficou pálido quando eu apontei uma fumaça estranha na hélice esquerda. Esse avião é legal porque voa com um motor só, disse. Não havia fumaça nenhuma, mas ele não despregou o olho da janela.

Não ia contar essa história, porque ela é banal. Na verdade, ia falar do Canadá, pela quarta vez seguida escolhido o melhor país do mundo para se viver, por um relatório da ONU. Um lugar bacana, rico, próspero, civilizado. Mas que tem um inverno de matar. Só venho ao Canadá no verão, por isso concordo com a ONU. Não sei se acharia o mesmo debaixo de neve, 32 graus abaixo de zero. Tudo bem. Se você vier um dia, escolha junho e julho. E não deixe de pegar o teco-teco. Em tempos de poucas emoções, dá até para escrever uma crônica.

ESPANHA (25.05.1997) – Depressão virtual

Ando meio deprimido nas últimas semanas e minha mulher ralha comigo, é fácil ficar deprimido em Mônaco ou Barcelona, quero ver é ficar deprimido aqui, em São Paulo. O que acontece é que as distâncias estão diminuindo muito, e o que há alguns anos significava um exílio-relâmpago, uma fuga de uma semana da nossa realidade absurda, já não é mais.

Alguns anos atrás, ansiava por entrar no avião, na volta, para pegar um jornal já velho de um ou dois dias. Eram os tempos do impeachment, do PC, do desmoronamento daquele castelo de cartas marcadas e imundas que acompanhei com tanto prazer e deleite até cair de podre.

Naqueles dias era possível se desligar totalmente daí, ou, no máximo, receber notícias incompletas, atravessadas, que só serviam para me deixar mais ávido por detalhes, louco para chegar e saber. Eu não costumava telefonar demais para o Brasil, as ligações eram mais caras, tudo era mais distante e difícil.

E foi outro dia, parece muito mais. Hoje, cinco anos depois, se tanto, chego a um autódromo pela manhã e entro na Internet. Leio tudo que aconteceu no dia anterior, recebo e engulo cada escândalo, cada barbaridade, cada cadáver, como quem toma um café e come uma rosquinha.

Envio e recebo mensagens, telefono e acho fulano no celular, não há fronteiras. É ótimo, você pode pensar. É uma droga. Quando volto, nem preciso perguntar ao amigo que não vejo há uma semana o que aconteceu nestes dias?, porque já sei, e é a mesma merda de sempre, e já não há o que falar.

Três sem-teto mortos em São Paulo, mais um sujeito que aparece dizendo que comprou resultados de jogos de futebol e participou da máfia da loteria (e quando eu chegar, segunda-feira, ele estará flanando por aí, livre como um passarinho), rebeliões em presídios de norte a sul, deputados do Acre vendendo votos, ministro esbravejando histérico, o que de novo, enfim, acontece no Brasil?
Nada.

É por isso que fico deprimido. A Internet, meu modem, meu computador que permite até ouvir rádio, o rádio que me acorda em casa, a dez mil quilômetros daqui, que dá a hora certa e a situação do trânsito, tudo isso, que poderia me aproximar do Brasil, ajudar a matar a saudade, só faz me distanciar do meu país, do país que está cada vez mais longe de ser o país que eu queria.

Depressão virtual, era o que faltava.

MÔNACO (11.05.1997) – Que se dane o Brasil

Ficar batendo na história do charme e do glamour, das mulheres bonitas, das Ferrari e dos Rolls-Royce nas ruas, do cassino, do Festival de Cannes logo ali, tudo isso já ficou velho para se falar do GP de Mônaco. E causa inveja, por isso não vou falar mais nada sobre o assunto, nem sobre a loiraça de minissaia que está passando aqui embaixo da minha janela num Aston Martin 58 conversível. Nem sobre a festa de ontem à noite no iate de um milionário árabe, para a qual fui convidado, diga-se, tudo de graça, dança do ventre, um harém à beira-mar, etc. e tal. Nem sobre o Porsche que eu aluguei — porque aqui, menos do que Porsche o pessoal olha torto.

Todo ano, quando venho a Mônaco, sou obrigado a ouvir resmungos ressentidos de amigos e conhecidos, que sempre vêm com aquele papo xarope, pô, vai pra Mônaco, vida dura, hein?, e que todos os anos, igualmente, surpreendem-se ao me ver com a mala indo para o aeroporto na terça-feira da semana da corrida, ué a corrida não é só no domingo?, por que já está indo?, vai aproveitar, não? Eu normalmente não perco meu tempo explicando que aqui tem treino na quinta-feira e respondo que estou indo um dia antes porque tenho que pagar o condomínio e as contas de luz e telefone no meu apartamento vizinho ao do Villeneuve. É o bastante para encerrar a conversa.

Outros me perguntaram com frequência, nos últimos dias, alguns mais de uma vez até, se eu iria para a Indy no Rio, e eu respondi que não, que ia para Mônaco, e fui obrigado a ouvir as mesmas gracinhas de sempre. Para não deixar passar a oportunidade, decidi dizer que entre Jacarepaguá e a Riviera Francesa optei pela segunda, o que desperta ainda mais resmungos e ressentimentos.

Mônaco é melhor que Jacarepaguá, claro, aqui não tem favela, não tem Cidade de Deus, nem PM espancando pobre, nem juiz de futebol ladrão, nem essa história malcheirosa da venda da Vale, não tem trânsito maluco ou pessoas mal-educadas jogando lixo nas ruas, essas coisas que fazem do Brasil um subpaís.

Já disse, e quem não leu fique sabendo, que odeio achincalhar o Brasil, meu país, onde nasci e vivo, de onde nunca vou sair. Mas já disse também que não vou mais perder meu tempo defendendo o indefensável, os precatórios e o salário mínimo que aumentou oito reais, os selvagens que queimaram o índio vivo ou os fazendeiros que usurparam terras a vida inteira e não admitem que tem gente que precisa plantar para viver e comer.

Quero que o Brasil se dane, minha parte faço pagando meus impostos que vão para o bolso de um gatuno qualquer e votando em quem eu acho que pode transformar isso daí em algo habitável. Enquanto isso, e enquanto puder, venho para Mônaco na hora que me der na telha. Pelo menos sacia minha vontade de viver num lugar civilizado, alguns dias por ano, que seja.

SAN MARINO (27.04.1997) – O lixo do mundo

Minha irritação com as pessoas, especialmente os brasileiros, que falam mal do Brasil sempre foi industrial. Há anos viajando pelo mundo, correndo atrás da F-1, teria até um monte de motivos para achar que o meu país é um lixo. Afinal, a F-1 só passa por lugares civilizados, a velha Europa, o Japão, a Austrália, o Canadá, até a Argentina, vizinha que a gente conhece tão pouco.

Há anos gasto meu tempo e vocabulário tentando defender o Brasil. Mas meu orgulho tem sido despedaçado ultimamente e os acontecimentos — tudo que a gente lê nos jornais, ouve no rádio, vê na TV, sente na pele — estão fazendo do Brasil um país indefensável.

Como explicar, por exemplo, Eldorado dos Carajás? OK, a miséria, os conflitos inevitáveis de uma questão agrária secular, as pessoas não entendem direito, mas aceitam com alguma comiseração. E o Carandiru? Bem, é claro que foi uma carnificina, mas você tem que levar em consideração a tensão do momento, presos violentos… dá para ser perdoado, afinal eles aqui tiveram Napoleão, Hitler, não ficam muito atrás nas barbáries históricas.

Diadema? É duro, tenta-se argumentar que é uma exceção, mesmo não sendo, todos sabemos, mas afinal é o meu país, não gosto de vê-lo sendo tratado como uma terra de selvagens, animais incontroláveis. Só que agora teve essa do índio queimado vivo, esse ato abominável, cometido por bacaninhas de classe média, cretinos filhos do poder e da elite que tudo pode e tudo faz.

Eu estou com um gosto amargo na boca. A cada duas semanas saio do meu paraíso tropical, das morenas gostosas, das praias libidinosas, do sol o ano inteiro, do Caetano e do axé, da bunda da Carla Peres, do futebol de Romário e Bebeto, para o que se imagina serem países sombrios, frios no clima e na alma, de gente que não tem amigos e se mata no metrô de Estocolmo. É tudo um grande equívoco. Sombrio é o Brasil, que queima mendigos nas ruas, que mata crianças de fome e de crack, o Brasil da polícia imoral, dos políticos imorais, de um povo cada vez mais imoral. Nós somos um país imoral.

Aqui, na Europa, as pessoas sorriem. Em Riolo Terme, uma cidadezinha onde me hospedo, ao lado de Imola, os velhinhos andam de bicicleta e tomam café expresso em mesinhas na calçada. As crianças brincam num parquinho de diversões ingênuo na frente do meu hotel, que não é a Disney dos nossos sonhos, dos sonhos medíocres do brasileiro que compra TV em Miami, um parquinho que tem um carrossel e um bate-bate. E sorriem, felizes.

Os jovens andam de bicicleta de dia, de noite, de madrugada. O policial, civil, diz bom dia e boa tarde. Não te arrebenta a cara, nem te mata, se não gostar de seu carro velho. É assim na Itália, na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, na Bélgica, na Áustria. E o que eles têm que nós não temos? É simples: tudo. Somos mesmo um lixo, é duro de admitir.

ARGENTINA (13.04.1997) – Globalización

Costuma-se dizer por aí que o melhor termômetro de um país são seus motoristas de táxi. Em meia hora de conversa no meio do trânsito, dá para ficar sabendo de tudo, apurar o ânimo da população, conhecer os vilões e heróis do momento, os resultados do futebol e o resumo da novela na noite seguinte. Em Buenos Aires, essa característica dos condutores é ainda mais visível. E além de não fugir de nenhum assunto, os taxistas portenhos são maniqueístas: torcem para o River ou para o Boca, amam ou odeiam Maradona, veneram ou desprezam Evita.

E foi por isso que saí tão ansioso do saguão do aeroporto de Ezeiza, quarta-feira à noite. Raramente pego táxis no exterior, mas como por aqui estão faltando carros para alugar, recorri a um desses pretinhos com capota amarela, marca registrada de Buenos Aires, para me levar ao hotel. Vi “Evita” no cinema uma semana atrás, e com o filme na ponta da língua preparei-me para uma discussão acalorada com a vítima — ou motorista, como queiram. Se ele fosse a favor, eu seria contra, e vice-versa.

Mas dei azar, como de costume. “Brasileiro?”, me perguntou o senhor dos seus 50 anos, algo calvo, bochechas rosadas. “Si”, respondi em perfeito espanhol. E antes que pudesse citar Madonna para iniciar o embate, o homem engrenou o papo, num português meio atravessado. Contou que morou 17 anos no Brasil, que a mulher é brasileira, os cunhados e sogros também, e um dos filhos, parece. Viveu em Brusque, Santa Catarina, “barriga verde!”, disse, soltando uma gargalhada.

Ainda tentei achar um gancho para malhar o Antonio Banderas, mas não deu tempo. Hugo, este é seu nome, começou a perguntar sobre o Avaí e o Figueirense, enquanto eu, em vão, tentava mudar o eixo da conversa dizendo não gostar de futebol. Ele brincou: “Também, torce para a Portuguesa!”, acusou, apontando com o indicador o glorioso escudo da Lusa pregado na minha mala de mão.

Apelei para o último recurso, que faria de mim um ser politizado e, portanto, distante das discussões cotidianas do futebol. “Soy periodista”, intimei, mais uma vez sem sotaque. Foi o fim. Ele sacou de um maço de fotos e vibrou: “Periodista! Conheço um monte no Brasil, olha aqui o Luciano do Valle, o Tatá, o Sílvio, o Pascoal, sempre levo esse pessoal da Bandeirantes pra lá e pra cá quando eles vêm a Buenos Aires, já segurei até o guarda-chuva no campo para o Ely Coimbra!” Era verdade. Estava lá o Hugo com o Luciano, com o Sílvio Luiz, com o Oswaldo Pascoal, com o Otávio Muniz e, para minha inveja, com o Rivelino e o Tostão.

Fracassei em minha ideia inicial de esculhambar e/ou santificar Evita e Madonna, Perón e Banderas, a velha ditadura militar argentina e as costeletas do Menem, Maradona e Passarella. É culpa do Mercosul. O taxista conhece o Tostão melhor do que eu e assiste ao Jornal Nacional na TV a cabo. Fala da Xuxa com a mesma intimidade que qualquer baixinho no Brasil, sabe tudo sobre Diadema e Cidade de Deus e tem opiniões bastante críticas sobre a CPI dos precatórios. Globalização, dizem alguns. Ou, como se fala por aqui, globalización.

1996

PORTUGAL (20.09.1996) – Ó pá!

Portugal, Portugal. Vinha eu para esta terra num voo da TAP e a senhora ao meu lado diz ao marido: “Ó pá, dê-me aí um outro escutador porque este meu só fala estrangeiro”, e o marido, com elogiável discernimento, não providenciou a troca do fone de ouvido e apenas disse à esposa para que mudasse de canal, e enquanto a situação não se resolvia eu pedi ao comissário para mudar de lugar.

Portugal, Portugal. Chegando a Cascais, um lindo balneário colado ao Estoril, passei diante do Jardim dos Frangos e da sapataria Expresso Rápido, e quando cheguei a um restaurante com mesas na calçada, surpreendi-me com a informação na porta: “Ar-condicionado. Dentro.” É claro.

Nada disso é mentira, e confesso que não me irrita, nem sequer desperta a tentação de contar piadas de português aos meus amigos de cá, que são muitos e amáveis, colegas de profissão, antigos funcionários do autódromo, porteiros de hotéis, todos movidos a uma lógica especial, especialíssima. Perguntei ao garçom se ele tinha bolinhos de bacalhau e ele respondeu que não, e o senhor sabe onde tem?, e ele: do outro lado da rua há um restaurante, se eles tiverem lá, tem. OK.

Pois aqui não se diz alô ao telefone, mas sim estás?, ao que se escuta do outro lado da linha estou, claro, porque se não estivesse não atenderia ao telefone, não há dúvidas quanto a isso.

Eu só não entendo mesmo a expressão ó pá!, usada no início e no final de quase todos os diálogos, sem um sentido definido, talvez equivalente ao paulistano e deselegante ô meu, mas não sei ao certo se é isso mesmo, porque sua utilização parece mais difundida e polivalente, vale para tudo. Quando vier a Portugal, ó pá, não esqueça de repetir a todo instante ó pá. Ó pá pra lá, ó pá pra cá, e vamos em frente, afinal viemos todos daqui, meu amigo.

ITÁLIA, Monza (06.09.1996) – O cachorro e o policial

Andei fazendo as contas e conclui que de 89 para cá vim à Itália 12 vezes. São duas corridas por ano, uma em Imola e outra em Monza, e estive na maior parte delas. Sempre desembarcando no aeroporto de Malpensa, que fica a uns 50 quilômetros de Milão, aqui do lado, uma cidade interessante, cheia de gente elegante, com um trânsito caótico e uma absoluta ausência de ruas paralelas. É o melhor lugar do mundo para se perder, depois de Roma da Lapa.

É engraçado descer em Malpensa. A Itália, como se sabe, é muito parecida com o Brasil, no que tem de bom e ruim. O mau-humor dos policiais que checam o passaporte, por exemplo. Para evitar problemas, normalmente eu me fantasio de jornalista especializado em F-1 assim que saio do avião: boné da Ferrari, camiseta da Williams e dezenas de adesivos pregados na mala de mão, da Minardi, da Jordan e até da Forti. Mesmo assim, a primeira pergunta, meio resmungada, em italiano, é: “O que você veio fazer aqui?”
À resposta óbvia, vem a réplica: “É a primeira vez na Itália?” Os carimbos não deixam dúvidas, mas o policial do lado de lá do guichê se recusa a identificar as marcas que provavelmente ele mesmo deixou nas folhas do meu passaporte alguns meses atrás.

Passada esta barreira, vem a fila da alfândega. Enquanto as bagagens rodam na esteira, um pastor alemão vai de passageiro em passageiro, arfando, seguro por um soldado do exército que fica batendo nas malas e dizendo “cheira aqui”, “agora aqui”. Se o cão late, meu amigo, pode esperar pelo pior.

É sempre o mesmo cachorro, e todo ano ele late para a minha mala. Creio que o animal em questão foi treinado para farejar drogas, mas todo ano implica com a minha mala, embora eu não use drogas e se usasse não carregaria na mala, depois de assistir “O Expresso da Meia-Noite”. Ultimamente tenho procurado não trazer nem perfume para não magoar o faro delicado do pastor alemão, que acredito ser naturalizado italiano.

Depois que ele late, como todos os anos, vou para a salinha e o policial, também sempre o mesmo, pergunta se eu fumei maconha antes de embarcar e é claro que respondo que não. Não e ponto final. Uma vez fui fazer gracinha e disse que jamais levaria drogas numa viagem de avião, de trem quem sabe, e o cara não gostou. Revistou até minhas cuecas e não encontrou droga nenhuma, quer dizer, não a que ele imaginava, mas deixa pra lá.

Agora só volto à Itália em maio do ano que vem, para o GP de San Marino. Vou descer no mesmo aeroporto e já penso em trazer um osso, quem sabe um pacote daquelas comidas de cachorro que os fabricantes garantem ter gosto de bife. Ou talvez traga um bife de verdade. Tudo para que pelo menos os latidos do cãozinho não sejam em vão. Quero ver a cara dele, do policial, ao abrir a mala e achar uma peça de alcatra. Ou vou preso, ou fico com o cachorro.

BÉLGICA (23.08.1996) – No caminho, as batatas

Diz meu amigo inglês Eric Silbermann que a Bélgica é aquele país que só serve para ficar no meio do caminho. Para ir à França, os alemães passam pela Bélgica. Os franceses, quando querem ir à Alemanha, fazem o mesmo. E nesse trajeto se empanturram de batatas fritas com maionese. E se perdem, também, apesar do tamanhinho do país, porque na Bélgica se falam duas línguas, o flamengo e o francês, e até os nomes das cidades são diferentes nos dois idiomas. Procure Liège, por exemplo. Não vai achar. Mas se seguir as placas para Luik, você chega lá.

Civilizada e pacata, a Bélgica é o alvo predileto dos franceses, que têm por seus nativos o mesmo apreço intelectual que nós, brasileiros, dispensamos aos portugueses. Contam, os franceses, que o belga antes de dormir coloca um copo d’água cheio e outro vazio no criado-mudo, porque à noite ele pode acordar com sede — ou não. E que os belgas donos de padarias, ou pasticeries, como queiram, são meio atrapalhados, porque se você pede uma baguete sem manteiga eles dizem que a manteiga acabou, pode ser sem margarina?

Mas os belgas têm um grande mérito, o de terem inventado as batatas fritas. Consta que foram os americanos os primeiros a desvendar os dotes culinários do tubérculo ao assá-lo numa fogueira, mas nunca imaginaram que pudessem cortá-lo em tiras e fritá-lo, dada a complexidade do processo. Hoje a América reverencia a guloseima, ainda mais se acompanhada de um belo hambúrguer, este uma invenção alemã.

Quando venho a Spa-Francorchamps, denominação errônea, porque não existe uma cidade com esse nome e sim duas, distantes 20 quilômetros entre si, a primeira Spa e a segunda Francorchamps, me hospedo num vilarejo vizinho, de batismo Malmedy. Spa é mais legal, tem termas e cassino e uma vida noturna muito agitada, que só acaba lá pelas oito horas. Da noite, mesmo, e sendo verão com o sol a pino. Malmedy dorme mais cedo ainda. Se os marcianos do Independence Day aterrissassem nesta região depois das onze concluiriam que a Terra é um planeta inabitado com curiosas formações rochosas em forma de casinhas com floreiras nas janelas.

Nos dias da corrida, a vida ganha outro ritmo e os restaurantes de Malmedy, os dois, que chamamos carinhosamente de “truta” e “italianinho” já que seus nomes são um mistério, fecham mais tarde, aguentam uma gente estranha e barulhenta que fala um idioma incompreensível e discute uma porção de assuntos. Ultimamente, qualquer coisa, menos Fórmula 1. Como diz outro amigo meu, a Fórmula 1 é muito legal, o que estraga são as corridas.

HUNGRIA (09.08.1996) – Tentações

Budapeste é uma daquelas cidades cheias de tentações proibidas. O fim do comunismo, a queda do Muro e todas aquelas coisas que faziam do mundo muito mais divertido do que ele é hoje levaram a Hungria à perdição. Há cassinos, muitos, e mulheres, muitas, em bares suspeitos, muitos também.

Os nomes das casas noturnas não deixam dúvidas sobre seu conteúdo: Pink Pussycat, Dolce Vita, Caligola e Aphrodite são algumas delas. Oficialmente, boates. As meninas dançam e tiram a roupa enquanto você toma uma cerveja. Depois elas sentam à sua mesa, você paga uma champanhe, gasta os tubos, não consegue se comunicar porque elas só falam húngaro e o resto você sabe, é linguagem universal, a mais antiga das profissões etc.

E joga-se muito também, só em dólar. Fui a um cassino ontem à noite, o Las Vegas. Eles tiram sua foto na entrada, pedem o passaporte e desejam bom divertimento. Nada de boa sorte. Arrisquei U$ 50 numa mesa de pôquer e irritei o crupiê porque apostava muito pouco. Perdi tudo e fui embora sem gastar nenhum tostão a mais e amaldiçoando o jogo, as roletas e o black jack. E perdi só cinquentinha, que minha mulher não saiba. Tem gente que deixa a casa, o carro e as roupas. É meio deprimente, esse negócio de cassino. Há uma sensação de que todos são inimigos entre si e sorrir para a mocinha que troca as fichas não pega bem. Falar com ela, então, nem pensar.

A maioria das grandes cidades do Leste Europeu, depois de 89, seguiu pelo mesmo caminho. A mãe Rússia fechou as torneiras, os empregos públicos nas enormes estatais começaram a rarear e as pessoas se viraram do jeito que deu. Para gerar dinheiro, nada melhor que a indústria do turismo e dela fazem parte os cassinos. Por tabela, a prostituição aumentou, ou pelo menos escancarou-se, e é uma realidade visível em Praga, Bucareste ou Varsóvia, em Moscou ninguém faz nada sem a máfia local e por aí vai. Marx bem que avisou.

Mas não pense por isso que Budapeste é uma terra de ninguém, embora para meu gosto já tenha McDonald’s e Nike demais, uma agressão ao passado da Cortina de Ferro, com seus espiões, seus mistérios e seu charme austero. Ao contrário, é uma cidade alegre e maravilhosa que merece ser visitada por sua arquitetura encantadora, seus castelos e igrejas, o Danúbio, que não é azul, suas termas e piscinas públicas, seus Trabant e seu ar cinzento da periferia onde o proletariado, um dia, achou que poderia ser feliz. E talvez tenha sido, mesmo.

ALEMANHA (26.07.1996) – A Norma DIN
Se você vier à Alemanha um dia, vai perceber que os caras só usam o mesmo tipo de letra em placas, na sinalização pública, nas fachadas dos estabelecimentos comerciais, nos painéis de ônibus e em quase todos os logotipos. E também que em todas as estradas a distância entre as faixas e os olhos-de-gato é sempre a mesma, e que nas horas cheias, no rádio, para tudo para o noticiário. E o locutor lê sempre assim: Frankfurt – primeiro-ministro tem dor de barriga; Ancara – explode bomba e mata 200 pessoas; Nova York – cai avião e mata todo mundo; Atlanta – nadador alemão bate recorde mundial, tudo sempre no mesmo tom.

Tudo por aqui é padronizado por um negócio que se chama Norma DIN, sendo DIN uma sigla para Deutshland sei-lá-o-quê, um treco que normatiza tudo, das letras às distâncias, passando pelos equipamentos obrigatórios nos carros, pelos dispositivos de segurança das panelas e pelas medidas dos cinzeiros.
É até legal, mesmo porque lendo o manual do meu DKW, que como se sabe é um carro de origem alemã, descobri que ele está perfeitamente de acordo com as exigências da Norma DIN, e portanto não é por culpa da fumaceira do meu motor dois tempos que mal dá para respirar em São Paulo. Se aqui pode, por que não aí? Ah, meu carro é de 1962 e a Norma DIN era diferente, foi atualizada, vai dizer você, e eu respondo que isso é detalhe.

Mas o alemão, de fato, não consegue viver se não tiver normas a respeitar. O pessoal brinca, diz que alemão é o português que aprendeu a fazer contas, uma evidente maldade, mas a verdade é que eles são rígidos demais e pouco maleáveis ao que a gente conhece por jeitinho, jogo de cintura, coisa de brasileiro. Não, isso o alemão não tem. Basta ver a seleção deles jogando bola, durões, quadrados, mas extremamente eficientes.

E é isso que é a Alemanha, um país eficiente em tudo, que foi destruído por uma guerra há cinquenta anos e em tão pouco tempo se reergueu de maneira assustadora. Hoje os caras fazem aqui os melhores carros do mundo, têm Porsche, BMW, Audi e Mercedes, e acho que isso basta, vivem chegando à final da Copa, se enchem de medalhas nas Olimpíadas e ainda fazem uma baita salsicha gostosa e uma cerveja que vou te dizer um negócio. Tudo graças à Norma DIN, a bíblia germânica, que mete o bedelho em tudo e diz como as coisas devem ser feitas. É meio autoritário, mas funciona. Não se esqueça da Norma DIN quando você vier para cá um dia. É uma das formas de se entender a Alemanha, os alemães e o medo que a Europa tem desse pessoal.

INGLATERRA (12.07.1996) – Viagem’s diário

Na Inglaterra, como se sabe, é tudo ao contrário. A começar pelos carros, os únicos do mundo em que o motorista senta no banco do carona — li isso em algum lugar, não tem muita graça. Aliás, não são os únicos. No Japão é assim, na África do Sul idem, na Índia também, acho que nas Malvinas.

Mas não são só os carros, os diferentes. A língua também é toda invertida. Casa do João, por exemplo, é John’s house, e não house of John, como seria mais lógico. Roda esquerda (do carro) é left wheel, traduzindo, esquerda roda, e não wheel left, afinal a roda é mais importante que o esquerdo, e portanto deveria ser priorizada na sentença, mas não é.

Em compensação, xícara de chá, que por analogia deveria ser tea’s cup, é cup of tea, traduzindo, xícara de chá. Alguém sabe explicar o motivo? Não, como também é inexplicável o fato de os ingleses terem inventado o futebol e jogarem tão mal, como também é inexplicável se escrever inexplicável com x e não com s, enquanto inesperado é com s e não com x. Culpa do latim, do grego e do romano, parece.

E por falar em chá, diz a revistinha da Benetton, aquela mesma que avacalhou com São Paulo quando teve corrida no Brasil, que inglês não sabe fazer comida, e que por caridade o resto do mundo concedeu aos britânicos o título de melhores fazedores de chá do mundo, posto que a única habilidade exigida é ferver a água, algo não muito complicado.

Mas são espertos os ingleses, ao contrário do que deixam transparecer. A rainha Elizabeth, por exemplo, com aquela carinha de pamonha, é durona, tirou o título de Sua Alteza Real da Lady Di, que finalmente se divorciou de outro pamonha, o pamonha Charles. Diana vai ganhar trinta milhões de dólares para se divorciar. É espertinha. Queria mais, setenta milhões, mas as altezas reais bateram o pé nos trinta mesmo.

E o Charles quer se casar de novo, com aquela horrorosa da Camila Parker-Alguma-Coisa, não lembro o sobrenome, só lembro a cara de buldogue dela, e os ingleses estão apavorados com a possibilidade de ela virar rainha, é preferível uma pamonha a um buldogue, pamonhas são simpáticas.

E tomara que a rainha não leia isso tudo, porque se ela souber que a chamei de pamonha não me deixa mais entrar na Inglaterra, e isso vou lamentar, porque gosto daqui, gosto de chá, gosto do fog, só não gosto da cerveja quente. Mas não corro esse risco. Quero ver é alguém do serviço secreto traduzir pamonha para a rainha. Nem falando ao contrário.

CANADÁ (14.06.1996) – Meia aliche, meia mussarela

Um dos aspectos interessantes de vir ao Canadá é ter que se valer dos serviços de companhias aéreas dos Estados Unidos. Como quase nunca vou aos Estados Unidos, divirto-me muito com as particularidades que envolvem uma viagem ao país, mesmo que seja de passagem, como é meu caso. Na fila do aeroporto, por exemplo, ainda no Brasil, a funcionária da companhia, seja qual for, leva a cabo um interrogatório curiosíssimo antes de despachar a bagagem.

Pergunta se por acaso eu estou levando alguma bomba na mala, e naturalmente a resposta é não, apenas os fios, o explosivo vou comprar lá, brinco, o que não é recomendável. Quem fez a sua mala, pergunta, e eu respondo que foi minha empregada, e ela quer saber se a moça em questão tem vínculos com alguma organização árabe ou se é filiada à seita do reverendo Moon, e eu respondo que não, que já faz tempo que ela chegou do Iraque, nem usa mais o véu, apesar de ainda rezar voltada para Meca, e isso também não é recomendável dizer.

Na entrada do avião, outro funcionário me questiona sobre a mala onde está meu computador. É minha bagagem de mão, digo, e ele pergunta onde ela esteve nos últimos minutos, e eu digo que esteve na minha mão, visto que é uma bagagem de mão. É legal desconcertar esse pessoal acostumado a perguntar a mesma coisa centenas de vezes por dia e a receber respostas temerosas e graves, como se alguma grande conspiração contra a América estivesse sendo tramada em Guarulhos ou Mogi das Cruzes.

Uma vez dentro do avião, as coisas não são assim tão ruins. É verdade que num avião de 300 lugares há menos de 15 para fumantes, parte da campanha doentia que os americanos fazem contra o cigarro e os fumantes, mas com algum jogo de cintura dá para driblar a histeria e acender unzinho lá no fundo. E o voo em geral é agradável, dá até para telefonar para casa do aparelho instalado na poltrona, e muitas vezes o jantar é nada menos do que uma pizza, isso mesmo, pizza. Nunca tinha comido pizza em avião, meia aliche, meia mussarela.

Pena que desta vez vou ficar pouco no Canadá, um país generoso, bonito, culto e agradável. Segunda-feira pela manhã me mando para Miami, onde mora meu irmão mais velho, que vejo uma vez por ano. Lá chegando, vou responder às mesmas perguntas sobre bombas e drogas, tendo que acrescentar que nunca fui nazista e jamais estive pessoalmente com Hitler ou Fidel Castro. Faz parte dos cuidados que Bill Clinton toma para manter a paz em seu território. Gosto de Miami, tem bons bares e saborosas asinhas de frango com cerveja gelada. O único problema é que ninguém fala inglês, e meu espanhol está cada vez pior.

MÔNACO (17.05.1996) – Já foi melhor

Tem uma boate aqui em Mônaco que, dizem, é o point da moda, é onde se deve ir para ver e ser visto, essas babaquices. Chama-se Dimes, e como eu nunca vou a festa nenhuma nesse paiseco de esnobes, resolvi que iria lá sexta à noite. Pensei em pintar o cabelo de vermelho e vestir um paletó verde com gravata amarela, para aparecer, mas me aconselharam a não ser tão discreto, que pega mal.
Aí abro o jornal, o simpático Nice-Matin, e leio que uma cerveja na Dimes custa 200 Francos. Dá 40 dólares. Uma cerveja. Não é preciso dizer que não fui à boate e que me limitei a uma pizza no calçadão da Rue Massena em Nice, a 20 km do Principado, a alguns metros do hotelzinho de quinta em que estou hospedado.

De quinta, sim, porque não pense que é fácil arrumar um quarto no Hermitage ou no Hotel de Paris, com suas sacadas debruçadas sobre o porto de Mônaco e as ruas por onde passam os pilotos de F-1. Fácil é, basta ter cinco mil dólares para torrar em quatro dias só em diária. Difícil é arranjar tanto dinheiro assim.

Mas há suas compensações. No ano passado, por exemplo, quando embarquei em Paris, soube que a Sharon Stone estava no mesmo avião, indo para o Festival de Cinema de Cannes. Acho que era mentira, mas sou daqueles que acha que verdade é aquela mentira bem contara, e por isso coloquei no meu currículo, no item “viagens internacionais”, que voei com a Sharon Stone, sem entrar em maiores detalhes.
Este ano estava a Cher no meu avião, e desta vez é verdade mesmo, porque eu a vi. Magra, branquela, envelhecida, vestida de preto e chupando pirulito de uva. Um horror, mas era a Cher. Vai pro currículo também. Tinha um outro ator, que não sei o nome, e um bando de japoneses que compraram todos os estúdios de cinema de Hollywood e foram para Cannes conferir o lucro ou prejuízo de seus negócios.

Em Mônaco, mesmo, pouca gente importante. No ano passado veio o Maradona. Agora, parece que o Al Pacino ficou de aparecer, mas ainda não vi. A família real só dá as caras no domingo e olhe lá, porque eu soube que o príncipe Albert, depois da largada, sai do seu camarote à prova de bala e sobe no apartamento de um amigo para ver a corrida na TV, voltando só na hora de entregar os troféus. E a princesa Stephanie se casou com um segurança, está cheia de filhos e isso a

ITÁLIA (03.05.1996) – Mucca Pazza

Quando ouvi a expressão na TV, quase morri de rir. Era um programa para adolescentes, chamado “Planet”, em que a entrevistadora perguntava a alguns jovens — e jovens são iguais no mundo todo — se eles não tinham medo de comer hambúrguer por causa da mucca pazza. Mucca pazza!

Mucca pazza é vaca lôca, my brother. Estamos na Itália, e aqui também o pessoal tem medo de bifes por causa da vaca lôca inglesa. E não sei bem porque estou falando na mucca pazza, mas foi o que me fez sorrir pela primeira vez segunda-feira à noite, quando cheguei da Alemanha.

Estive na Itália pela primeira vez em 89. Quando desci do trem em Roma, tarde da noite, fui correndo telefonar pra casa. Tirei o fone do gancho e nada de linha. Pi-pi-pi, sinal de ocupado. Orelhão quebrado, pensei, e troquei de aparelho. De novo a mesma coisa. “Questo orecchione no funziona!”, gritei. Todos os telefones do país estavam quebrados.

Na verdade, descobri depois, o telefone dá a linha na Itália quando está ocupado. Não é brincadeira. Computadores enlouquecem aqui. Só nos dois primeiros dias deste GP de San Marino, dei assistência técnica a um português, um croata, um canadense e um inglês para que seus textos cruzassem o éter e chegassem às redações.

Este último, um londrino meio esnobe, eu sacaneei de propósito e até agora ele está ditando suas matérias pelo telefone para um editor enfurecido. É um chato que me disse, quando fui prestar meus serviços gratuitamente, que esperava esse tipo de dificuldade de transmissão em países como o Brasil, nunca na Itália. Cretino. O problema é que o modem de um computador só disca um número quando consegue identificar uma linha. Descobri isso alguns anos atrás e há um comando secreto que emburrece a máquina, fazendo-a discar mesmo se estiver tocando o Luiz Melodia do outro lado da linha.

A Itália é onde o brasileiro se sente em casa quando está na Europa. Aqui pode parar o carro sobre a faixa de pedestre e passar o sinal vermelho. É de bom tom xingar alguém quando se comete tal infração. Quase atropelei um velhinho no início da semana em Bolonha e percebi que quem tinha o direito de reclamar era eu, e não ele. Curioso, este país.

E tem o futebol, o Milan, a Juve, as corridas de bicicleta, o macarrão delicioso e a pizza nem tanto. Pizza boa é em São Paulo, na Vila Mariana. E a língua, linda, sonora, sentimental. E a Ferrari, claro. Se há um país que merece mesmo mais do que um GP, é a Itália, onde vaca lôca é mucca pazza, a melhor definição para bovinos malucos que já ouvi em toda minha vida.

ALEMANHA (26.04.1996) – Só falta falar

Não me considero um jeca, mas confesso que às vezes fico boquiaberto com algumas coisas que vejo cada vez que desembarco na Europa. Cheguei quarta-feira à tarde ao aeroporto de Frankfurt e fui pegar meu carrinho alugado para vir a Eifel Land, a região onde fica Nürburgring, 180 km a oeste. Desta vez dei sorte. Reservei o mais barato de todos, mas já não havia nenhum disponível e jogaram na minha mão uma charanga, como diria, da hora.

A marca não interessa. Claro que se fosse um Audi ou um Porsche iria aproveitar para me gabar, mas não é o caso. O carro em si, lindão, é verdade, não tem a rigor nada de espetacular. Só o rádio.
E que rádio, rapaz! Você liga e aparece a frequência no painel do carrão, ao lado da temperatura externa e da hora certa. Não tem dial, ponteiro, essas coisas do arco da velha. Até aí, nenhuma surpresa. Já vi algo parecido antes. Só que de repente começaram a aparecer no painel algumas coisas estranhas. Primeiro “Cramberries”. Depois, palavra por palavra, “Ode to my Family”. Profundo musicólogo que sou, liguei os fatos, apurei os ouvidos e conclui que o bendito do rádio, naquela estação, a FFH, diz por escrito no painel o nome da música que está tocando. É o primeiro rádio para surdos que vejo em toda minha vida. Você pode não ouvir, mas vê.

E não para aí. Outras emissoras informam pelo painel o clima em várias cidades da Europa e as condições das estradas. Fiquei sabendo pelo painel, por exemplo, que em Estocolmo a temperatura era de 19 graus e que a Autoestrada 3, que me levava a Nürburgring, tinha trânsito “gut”, ou seja, bom, fluindo legal, sem congestionamentos. Logo depois entrou um número de telefone que eu não entendi direito se era disk-erótico, telepizza ou comida chinesa, porque estava ultrapassando um caminhão naquela hora.

Cada rádio dá uma informação diferente. As mais pobrezinhas inscrevem apenas o nome no dial, ou no painel, melhor dizendo. Deduzi que o equipamento transmissor da emissora tem que ser compatível com o aparelho receptor do carro. Os sinais são emitidos por ondas de rádio e convertidos quando passam pela antena. É uma tecnologia até simples, mas nem por isso menos genial.

Minha surpresa foi tão grande ao perceber que meu rádio fazia tudo isso, que exclamei: “Só falta falar”. Claro que é uma grande idiotice, já que falar é a única coisa que os rádios sempre fizeram, desde os tempos de Marconi. Sorte que não tinha ninguém perto para ouvir. Ou será que o dito cujo escuta, também? E se escutar, será que entende português?

ARGENTINA (05.04.1996) – Mucho legal

Estou começando a entender esse negócio de Mercosul. Na verdade, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai são tudo farinha do mesmo saco. Tem só uma pequena diferença de língua, nada más. E não é preciso muito esforço para entender o que os caras falam. Coca-Cola é Coca-Cola (e não Cueca-Cuela, como pensam alguns); Maradona é Maradona; bom dia é buenos dias, mas se você disser bom dia eles entendem do mesmo jeito. Há que se tomar cuidado apenas com todavía, que é ainda, e empezar, que é começar. Em Bagé também se diz empeçar, e Bagé fica no Brasil.

Cheguei a Buenos Aires tentando falar um bom espanhol, mas desisti depois do primeiro “tchau” que recebi em troca de um elaborado “adiós”. Agora estou dizendo “oi” e “obrigado”, para não complicar. Decidi assumir minha brasilidade depois de assistir a um noticiário bilíngue na TV, com o presidente Fernando Henrique batendo um animado papo com Carlos Menem diante de uma apresentadora argentina e uma brasileira que diziam “besos para Brasil” e “um abraço pra toda a galera de Buenos Aires”. Una esculhambación.

As semelhanças entre Brasil e Argentina são enormes, maiores do que sempre pude imaginar. Nos carros, por exemplo. Aqui tem Gol, Verona (que se chama Orion), Versailles (é Galaxy), Pointer, Uno e Prêmio (que é Duna). Tudo feito em Betim e São Caetano. Creio até que nossa maior frustração em relação aos portenhos, origem da rivalidade histórica entre os dois países, é o fato de termos convivido com Opalas por mais de 20 anos, enquanto eles o fizeram com os Ford Falcon, muito mais hermosos, digo, charmosos. Mas ambos, Opala e Falcon, acabaram.

Nós tivemos Pelé, eles Maradona. Temos o Flamengo, eles o Boca. Roberto Carlos e Julio Iglesias. Mar del Plata e Guarujá. Senna e Fangio. Buenos Aires e São Paulo. Picanha e chorizo. Leonardo Pareja e rebeliões a granel nos presídios argentinos. É tudo igual. Até na malandragem. Aqui hai que se tomar alguns cuidados. Os melhores hotéis pedem que os hóspedes anotem sempre o número de matrícula dos táxis que vão usar. “Tenemos muchos picaretas”, me disse o porteiro do meu, com incrível desenvoltura. “Picaretas?”, perguntei. “Si, picaretas, como dijo Luiz Inacio”. Ah, entiendo, respondi.

É tudo igual. Escutei até axé music no rádio traduzida para o espanhol. A letra diz “yo quiero te abraçar, te besar, peciso de usted”, sem a menor cerimônia. Argentino é o brasileiro que fala espanhol e tem cabelo comprido. E as meninas usam saias mais curtas do que aí. É tudo mucho legal, de verdad.

ATÉ QUE ENFIM! – 28/02/1997

E vai começar de novo, até que enfim! Daqui a uma semana, na Austrália, a Fórmula 1 volta a campo. Amanhã, é a vez dos primos pobres da Indy. Serve de aperitivo.

Muita coisa aconteceu nos últimos três meses, o período de pit stop desta coluna. Mas dá para resumir. Tirando a papagaiada das apresentações de carros novos, cada vez mais sofisticadas e de gosto cada vez mais duvidoso (teve até show das Spice Girls na festa da McLaren), notícia boa pra valer foram poucas.

A mais chocante de todas foi a compra da Ligier por Alain Prost. Não que fosse algo inesperado, mas o egocentrismo do anão narigudo extrapolou os limites do bom senso. A equipe já mudou de nome e virou Prost Grand Prix. Imaginem se quando o milionário árabe Mansour Ojeh comprou a McLaren tivesse a mesma idéia: Mansour Racing. Um horror. Ainda bem que o homem se mancou.

Para conseguir a aprovação da mudança do nome, a Peugeot, parceira de Prost a partir de 98, prometeu a Eddie Jordan (que relutava em assinar a autorização) a continuação do fornecimento de seus motores em 98. Gozado vai ser escutar as transmissões das provas no rádio e na TV: Olha lá o Panis! Rodou e bateu a sua Prost! Sua Prost? Eu nunca vou me acostumar com isso.

De novidade, também, surgiu a pintura da McLaren, que ficou linda em prateado. No mais, alguns estreantes desconhecidos, como o Shinji Nakano na Ligi…, digo, na Prost, o Jarno Trulli na Minardi, o Vincenzo Sospiri na Lola e outros mais famosos, como o Ralf Schumacher na Jordan, que pintou uma cobra horrorosa na lateral de seus carros.

Os testes de inverno mostraram aquilo que todo mundo já está acostumado a ver: a Williams andando na frente, a Benetton querendo fazer algum barulho e a Ferrari com uma droga de carro, mais uma vez. Mas, pelo menos, a equipe italiana se livrou do projetista John Barnard, o maior enganador das pranchetas de que se tem notícia.

E como é começo de temporada, não dá para fugir dos prognósticos. No fim do ano, me cobrem e vibrem com cada erro. A Williams vai ganhar a maior parte das corridas, mas a divisão de pontos entre Villeneuve e Frentzen vai ajudar Schumacher, que vai tentar jantar a dupla pelas bordas. Alesi e Berger vão quebrar e bater muito, como sempre, sem ganhar nada. A McLaren prateada sai do jejum de três anos sem vitórias. Rubinho, Diniz e Rosset terão um ano de provações. Equipe por equipe, entre os brazucas, a Arrows do Pedro é mais forte e estruturada. Mas o carro quase não andou nos treinos. Barrichello, por outro lado, testou bastante e está confiante em não dar vexame na Stewart. Ricardo, por sua vez, luta para classificar a Lola para o grid em Melbourne, domingo que vem. Se conseguir, dá uma festa – e eu espero ser convidado.

Quanto à Fórmula Cart Indy Mundial PPG Series (ainda não sei como chamar, confesso), vai dar Zanardi e Vasser no começo. Entre os brasileiros, apostaria no Gugelmin, sem muita convicção. O resto vai sofrer. E até sábado, na corrida de verdade (quá-quá-quá!).

CARTA AO MANÉ – 20/12/1996

Pois é, Mané, quanto tempo, não? Um ano, dez anos, um século, uma vida? Sei lá, mas a gente só podia ter se reencontrado mesmo desse jeito, numa arquibancada, onde a gente se conheceu, numa daquelas manhãs de domingo no Canindé, lembra?, o estádio não tinha nem iluminação, a gente jogava de manhã.

Foi com o Cruzeiro ou o Atlético? Acho que com o Atlético, você me achou no meio de um monte de gente no Morumbi, nem sei como, eu engordei um pouco, perdi alguns cabelos, estou diferente. Mas você tá igualzinho, Mané, não mudou nada.

Pois é, Mané, tanto tempo, você casou, tem duas filhas, eu também casei, lembra da Thais?, não?, bom, então faz muito tempo mesmo. E a padaria?, você continua lá na Lapa?, claro que eu lembro onde era, qualquer hora apareço lá, nem adianta me dar o telefone que não tenho caneta aqui. Não, não tô famoso nada, que é isso, você é que tá bem. Pois é, a gente nunca mais se viu, tanto tempo, nesse tempo todo eu rodei o mundo atrás de corridas de Fórmula 1, trabalhei aqui e ali, mas de vez em quando vou num joguinho, claro que vou, você é que sumiu.

Lembra, Mané?, 78, 79, não sei direito, a gente ficou uns 30 jogos sem ganhar, e quando ganhou do Botafogo de Ribeirão no Canindé, três a um, rapaz!, a gente comemorou como se fosse um título. Três gols do Caio, lembra? E tantos jogos, tantas viagens, tantas alegrias, lembra aquele dia que você invadiu o campo pra bater no juiz contra o Corinthians?, também, aquele pênalti, tinha mais era que apanhar mesmo.

Até o dia que você disse nunca mais vou a um estádio, nunca mais vejo um jogo, não aguento mais. Foi contra o XV de Jaú? Ou foi um zero a zero com a Sãocarlense? Ou aquela vez que fomos em quatro num ônibus até Ribeirão Preto, pra ver um jogo com o Comercial? Não lembro, não lembro, mas um dia você falou que nunca mais, chega.

Pois é Mané, e olha a gente aqui, quem diria, rapaz…

É, eu fui ao Mineirão e fui ao Olímpico, também. Você precisava ver, a gente espremidinho num canto do estádio, aquele mar de gente gritando e a gente lá, e quanto orgulho, Mané, quanta alegria de gritar Lusa, Lusa, Lusa!, mesmo sabendo que ninguém ouvia, só a gente, mas sempre foi assim mesmo, não foi?

Você dizia que nunca ia dar, mas olha só, Mané, deu, a gente chegou lá, sim, e foi lindo, inesquecível. Quem não foi ao Mineirão e ao Olímpico não viveu, eu dei agora pra citar Nelson Rodrigues, eu vivi, isso ninguém tira de mim. Mas que tá doendo, rapaz, ah, tá doendo, tá doendo muito. Eram só cinco minutos, não precisava ser assim.

Pois é, Mané, a gente chegou. Mas foi tão triste, tão dolorido, aquela bola entrando estilhaçou meu coração, me feriu de morte, chorei que nem criança, e a gente tinha prometido que não ia chorar mais, nunca mais. E eu chorei abraçado ao meu irmão, é ele mesmo, o Julinho, ele tinha uns cinco anos da última vez que você viu, tá grande agora, vai entrar na faculdade. Ele é que nem a gente, Mané, e tem um monte de caras como nós, e todos eles choraram.
Bom, a gente se vê por aí, eu passo na padaria, pode deixar. Não, hoje não, qualquer dia desses, agora não. Foi muito triste, Mané.

Nesta minha última coluna do ano, eu não falei de F-1, como não falei nas últimas duas ou três. Não dava para fingir que eu estava pensando em corridas com minha cabeça voltada para um jogo, para os 90 minutos da minha vida. E eu fiz questão de deixar por escrito o que senti nos últimos dias, as alegrias enormes e a tristeza devastadora de um cara, como a maioria neste país, apaixonado por futebol. Não há nada mais parecido com a vida do que um jogo de futebol, escreveu Albert Camus. Não mesmo.

A todos que me acompanharam pelo mundo neste ano, um ótimo Natal e um grande 97. Em fevereiro eu volto. E antes que me perguntem, o Mané existe, sim, tem uma padaria na Lapa, e eu não o via há uns dez anos, há uma vida.

VAI LUSA, VAI SER FELIZ NA VIDA – 13/12/1996

Eu estava em Silverstone em meados de julho do ano passado, sábado à noite, dia do meu aniversário. Eu sempre passo o aniversário na Inglaterra, dia 15. Coincide com a corrida. Como sempre faço há anos, quando estou fora por causa da Fórmula 1, telefonei para o Brasil para saber o resultado de um jogo da Portuguesa. É uma das coisas que mais me angustia, saber que a Lusa está jogando longe de mim. Eu não sossego enquanto não sei o resultado, seja uma decisão ou uma partida de terceira rodada, não importa.

(Gosto muito de futebol, é o esporte pelo qual sou realmente apaixonado, não perco um jogo da minha Lusinha quando estou por aqui, e vou de arquibancada, com a camisa e tudo, nunca usei uma credencial de jornalista para entrar num estádio.)

Naquele dia, lembro bem, eu tinha ido ao autódromo com a camisa da Portuguesa, a minha forma de torcer à distância num jogo muito importante, contra o Corinthians. Os estrangeiros não entenderam nada. Bastava um empate para irmos à final, o que não acontecia desde o Campeonato Paulista de 85. Já era bem tarde na Inglaterra quando liguei para a Jovem Pan, onde também trabalho, e perguntei para o pessoal da central técnica, com o coração na mão, quanto tinha terminado.

Estava zero a zero e faltavam poucos minutos para acabar. Eles me colocaram a transmissão direto do Pacaembu pela escuta, e eu fiquei ouvindo os últimos minutos. E no último minuto o Corinthians fez um gol, do Bernardo, eu acho, numa falha esquisita do Paulo César, um goleiro que não falhou o ano inteiro, só nos dois jogos com o Corinthians. Foi o pior aniversário da minha vida.

Estou lembrando essas coisas hoje porque amanhã, domingo, a Portuguesa estará reescrevendo sua história em Porto Alegre. Confesso que já não imaginava viver o bastante para ver a Lusa numa final de Campeonato Brasileiro. Muito menos assim, com um time que encantou o país, virou a namoradinha de São Paulo, que parece a turma do Asterix contra o Império Romano. Uma Portuguesa, querida, simpática, alegre, que não dá um pontapé, que me encheu de felicidade nos últimos dias.

Estive no Mineirão domingo passado, tomei chuva quarta-feira no Morumbi, chorei feito criança em Belo Horizonte e em São Paulo de novo, e sei que amanhã lá no Olímpico, qualquer que seja o resultado, vou chorar também. Serão lágrimas de torcedor, aquelas sinceras que aliviam o corpo e a alma, ganhe ou perca.

A Portuguesa nunca foi tão longe, e nunca esteve tão perto do coração de todo mundo. E só nós, os poucos que torcemos mesmo para a Portuguesa, nós que sempre fomos ao Canindé, nós que vimos aqueles empates com o Noroeste ou o XV de Piracicaba numa quarta-feira gelada à noite, só nós sabemos o que vai representar um título brasileiro, que está tão próximo, que se faz quase real.

Vai lá, Lusa, vai escrever tua história, vai. Vai ser feliz. Vai ser campeã na vida.

EU SÓ QUERO SABER DA LUSA – 06/12/1996

Vocês não fazem ideia do sacrifício que é escrever sobre Fórmula 1 numa semana em que o meu time está a um zero a zero da final do Campeonato Brasileiro. Quinta à noite fui ao Morumbi, perdi a voz pela segunda vez em duas semanas, hoje à tarde vou para Belo Horizonte, se formos para a decisão, vou até o inferno para ver a Portuguesa.

Aliás, como só penso e falo na Portuguesa nos últimos dias, decidi escrever hoje sobre a Portuguesa, mas isso não é justo, meu negócio é corrida, embora eu considere fundamental dizer pelo menos uma coisa: essa choradeira de quem ficou fora do campeonato é ridícula e egoísta. No ano passado, aqui em São Paulo, a Portuguesa ganhou o primeiro e o segundo turnos, acabou o campeonato com mais pontos do que todo mundo, e não foi campeã. E ninguém falou nada sobre injustiças e fórmulas obtusas, porque os finalistas foram Palmeiras e Corinthians, e contra esses dois ninguém fala nunca.

Portanto, vão todos caçar sapos.

E agora a F-1, num ritmo de agência de notícias para caber tudo. Paris: Ligier contrata o japonês Shinji Nakano, 25 anos, para ser o companheiro de Olivier Panis. Foi uma exigência da Honda. Londres: Jordan confirma teste para Nigel Mansell, dias 11 e 12 em Barcelona. Se ele couber no carro, disputa o próximo Mundial. Paris de novo: sai o calendário da temporada 97, sem muitas novidades, exceto o encerramento em Portugal, dia 19 de outubro, e a esperada troca de Nürburgring por Zeltweg, na Áustria.

Londres mais uma vez (as coisas só acontecem em Londres e Paris): a Stewart Grand Prix promete mostrar seu carro terça-feira, com a presença de Rubens Barrichello na capital inglesa. E finalmente, adivinhem, Paris: divulgada a lista dos pilotos inscritos para o Mundial de 97. Pedro Paulo Diniz corre com o número 2 e Barrichello, com o 22. A Ferrari terá os números 5 e 6. A Lola se inscreveu, mas ainda não anunciou os pilotos. Ricardos correm atrás das vagas, o Rosset e o Zonta.

E tchau, porque sábado que vem eu espero estar falando como finalista. Se não, meu humor estará insuportável e eu não recomendo a leitura das minhas colunas por uns dois ou três meses.

QUEM É O CULPADO? – 29/11/1996

Pela quarta ou quinta vez desde o dia primeiro de maio de 94, a imprensa italiana jogou no ventilador nomes de prováveis indiciados pelo acidente que matou Ayrton Senna. Nesta semana, talvez pela falta de notícias melhores, todo mundo resolveu comprar a versão divulgada pela agência de notícias ANSA. Os informes de Bolonha garantiam que seis pessoas iriam a julgamento já no início de 97.

São elas: Frank Williams, Patrick Head e Adrian Newey, pela Williams (os dois últimos na condição de projetistas do carro e, portanto, responsáveis pela coluna de direção que se rompeu); Federico Bendinelli e Giorgio Poggi, integrantes da administração ao autódromo de Imola; e Roland Bruynseraede, diretor de prova da FIA. Os seis serão acusados, de acordo com o resultado da investigação conduzida pelo promotor Maurizio Passarini, de homicídio culposo. Podem pegar até sete anos de prisão. Passarini já teria enviado seu pedido ao juiz de instrução do caso, Diego di Marco.

A imprensa explorou como quis os boatos lançados pela ANSA, que não cita suas fontes e não conseguiu falar com os magistrados de Bolonha. Frank Williams atrás das grades, Projetista na cadeia, Assassinos na prisão, foram alguns dos títulos que vi por aqui em jornais brasileiros, em chamadas de rádio e reportagens na TV.

Já se vão quase três anos da morte de Senna. Ninguém foi preso e nem será. Não vai acontecer nada, simplesmente porque não há nada para acontecer. Não faz sentido acusar de assassinato o dono de uma equipe por um problema mecânico num carro. Não houve negligência da Williams, quem conhece um mínimo de Fórmula 1 sabe disso. Senna pediu as modificações no sistema de direção que, segundo as investigações, levaram seu carro direto para o muro da Tamburello. E a Tamburello era daquele jeito porque os pilotos, Senna inclusive, nunca reclamaram dela.

A histeria da caça às bruxas, da busca de um culpado, tem que ser estancada. Senna não foi assassinado, portanto não há assassinos. Senna morreu porque era piloto de Fórmula 1 e ganhava a vida correndo a mais de 300 km/h. Poderia ter se salvado não fosse o azar de uma barra da suspensão perfurar a viseira de seu capacete. Outros ainda morrerão, assim é o automobilismo. Assassinos são os que desviam dinheiro da saúde enquanto bebês morrem nos hospitais brasileiros. Esses ninguém processa ou acusa. Este país precisa pensar duas vezes antes de falar bobagem.

GO, SPEED, GO! – 22/11/1996

Hoje eu vou revelar um segredo. Sou apaixonado pela Trixie, a namorada do Speed. Sim, dele mesmo, do Speed Racer, o melhor piloto do mundo. Magrinha, olhos amendoados, pernas longas, cabelos chanel, Trixie é meu amor platônico. E Speed, meu grande ídolo. Lembrei dele hoje porque passei numa loja de CDs e encontrei um disco com remixes da musiquinha do Speed, “Go, Speed Racer, go!”, lembram?

Nunca entendi porque Speed não chegou à Fórmula 1 e sempre se manteve fiel a essas corridas esquisitas em ilhas exóticas contra gangues de adversários, corridas com centenas de carros que se repetem a cada curva, o maior barato do mundo. Nunca vi Speed num monoposto, talvez porque Trixie insiste em acompanhá-lo a todas as corridas e porque o Mach 5 precisa de um porta-malas para carregar o Sprindle, seu irmão mais novo que aqui virou Gorducho, e o chimpanzé Chim Chim.

Speed seria páreo para Senna, Prost, Piquet e Schumacher, os maiores que vi. O Mach 5, é uma obra-prima da engenharia automobilística, projetado e construído por seu pai, Pops Racer. Vivo atrás de uma miniatura, se alguém souber onde encontro, me avise. Daria um pau na Ferrari e na McLaren fácil, fácil. Não precisa nem de telemetria, porque quando o Speed quer falar com os boxes ele manda aquela pomba mecânica, o “go bird”, que leva as mensagens necessárias. No mais, Speed acelera pra burro.

Speed Racer é o personagem da TV que eu adorei a vida toda. Seus desenhos ainda passam de vez em quando, na versão original em inglês, no Cartoon Network. Ele foi criado nos anos 50 por um japonês, Tatsuo Yoshida, e chegou à TV nos EUA em 67. Seu nome original era Go Mifune, de onde vêm o “M” no capacete e o “G” no peito. Go, em japonês, significa o número cinco ou então “garoto”. O carro, originalmente, se chamava Mach Go Go. Nos EUA, virou Mach 5.

A Trixie também usa um “M” na camisa, que vem de seu nome em japonês, Michi Shimura. Eu prefiro Trixie. E tem também o Sparky, mecânico e amigão do Speed. E, claro, o Racer X, o Corredor X, misterioso, agressivo ao volante, na verdade o irmão mais velho de Speed — mas isso ninguém sabe, é um segredo que só ele, o Corredor X, e nós, os fãs, conhecemos.

Neste exato momento estou ouvindo o CD. é bem legal, foi lançado pela Natasha Records, e se você encontrar, compre. Speed é um herói da velocidade, um ás das pistas, um garotão que faz das corridas sua vida, e que quase sempre ganha. Até nisso ele é bom, porque Speed não ganha sempre, muitas vezes é derrotado, e é nas derrotas, como se sabe, que se aprende mais.

Nos episódios da TV, Speed passa pelos maiores perigos, quase morre de vez em quando, mas no fim sempre se encontra com a Trixie. Essa é a única parte que eu não gosto. Morro de ciúmes.

OINC-OINC – 15/11/1996

Coisa gozada. Quarta-feira passada fui ao Morumbi assistir Portuguesa e Palmeiras, ganhamos fácil, e na saída do estádio levei um pontapé de um palmeirense cretino só porque eu estava com a linda camisa do meu time.

No dia seguinte viajei para os Estados Unidos para torrar uma grana e muita gente ligou meu sumiço ao pontapé suíno. Teve gente que achou que eu estava internado no Albert Einstein.

Não estou, mas depois de seis dias de Miami, seria o caso. Cheguei com a síndrome do shopping, porque Miami e redondezas nada mais é do que um imenso shopping cercado de estacionamentos.

Os caras só vendem e compram, ninguém faz mais nada além disso. E vendem as maiores idiotices do mundo, como um bip que apita se você não abaixa a tampa da privada, um chaveiro onde você grava o lugar onde parou o carro para não se esquecer, um haltere que quando levanta conta “one-two-three”… Comprei os três.

Voltei para votar nesta sexta-feira e na minha mesa repousavam vários faxes. Pelas estatísticas (os americanos adorariam), 36,4% eram mensagens de estimo as melhoras, 21,9% sobre Fórmula 1, 33,7% sobre corridas em geral e o resto era engano. Vamos, então, aos 21,9% de Fórmula 1.

Primeiro, da Sauber. Segunda-feira, a equipe suíça anunciou uma parceria com a Ferrari para ter os mesmos motores V10 da equipe italiana no ano que vem. Um acordo de transferência de tecnologia. No dia seguinte, a Ferrari cancelou o trato, porque não gostou do anúncio precipitado.

Quinta-feira, dia 14, o Hill fez o primeiro teste com o pessoal da Arrows, em Suzuka, usando um carro Ligier com pneus Bridgestone. Bateu e arrebentou o carro de testes. Começou bem. Também na quinta, a “Auto, Motor und Sport”, revista alemã, disse que a BMW e a Porsche vão voltar à F-1. A BMW com a Williams e a Porsche com a Benetton, ambos a partir de 1999. Ainda segundo a revista, em 98 as duas equipes deverão usar os motores Renault, mesmo com a fábrica afastada da categoria. Registrado.

A Minardi, sexta-feira da semana passada, fechou com a Hart e vai ter esses motores em 97. Tarso Marques pode correr pela equipe se der certo uma negociação tentada por Flavio Briatore: mandar o Alesi para a Jordan e colocar no seu lugar o Giancarlo Fisichella, que por sua vez está escalado para disputar o próximo Mundial na Minardi.

E é só. Fui para Miami, trouxe um monte de quinquilharias, comprei uma TV que não sei se funciona, comi centenas de asas de frango e hambúrgueres, voltei e coloquei o noticiário em dia.

Tchau e até a semana que vem, porque agora vou chutar um palmeirense pra ver se ele faz oinc-oinc.

BALESTRE FICOU GAGÁ – 08/11/1996

Todo mundo se lembra de Jean-Marie Balestre. Há sete anos ele se transformou no inimigo número 1 do Brasil, ele e seu protegidinho, Alain Prost. Lembro que naquela época eu vivia discutindo com meu irmão mais velho, fã de carteirinha do nanico, tinha até um pôster no quarto dele. Não que eu fosse um sennista histérico, como tantos que conheci, mas para contrariar o irmão mais velho a gente torce até pro Mansell. E torcer pro Senna era fácil, o homem ganhava tudo etc. tal.

O auge do ódio nacional a Balestre ocorreu no final de 89, depois daquela corrida histórica de Suzuka. Senna ia passar Prost na chicane, que jogou o carro em cima, abandonou e ficou roendo as unhas até o final da corrida, porque Ayrton foi empurrado pelos comissários, cortou a chicane, trocou o bico, saiu dos boxes como um louco, ultrapassou Nannini na mesma chicane e ganhou o GP do Japão numa recuperação memorável.

Ganhou e não levou. A direção de prova, com razão, desclassificou Ayrton porque ele recebeu ajuda externa e na volta da batida retornou à pista pela área de escape. Foi uma desclassificação, do ponto de vista legal, absolutamente correta. Do ponto de vista filosófico, injusta — principalmente porque Prost, o vilão da história, conquistou o título por causa da desclassificação de Senna.

O Brasil achou e elegeu o culpado rapidinho: Balestre, francês como Prost, presidente da FIA e da extinta Fisa, a quem respondia a direção de prova. É claro que Balestre não colocou o dedo na decisão de desclassificar Senna, nem precisava, porque a situação de ilegalidade era muito clara. Mas nesta semana, sem mais nem menos, Balestre resolveu dizer que deu uma mãozinha para Prost. Senna, na época, acusou o dirigente de manipular o campeonato, levou um gancho de seis meses que só não foi cumprido porque ele pediu desculpas publicamente.

As declarações de Balestre agora dão razão a Senna, dirão os sennistas. Balestre está gagá, respondo eu. Velho, esquecido, encostado num cargo decorativo da FIA, Jean-Marie, que no convívio pessoal é um sujeito sensacional, engraçado, espirituoso, resolveu aparecer. Quis dizer que quando era presidente determinava quem podia ou não ser campeão. Bobagem. Balestre nunca teve tamanho poder. Ele poderia entrar para a história apenas como o bruxo autoritário e espalhafatoso que esteve em Interlagos, em 90, todo vestido de preto, dizendo sentir prazer ao enfrentar a massa enfurecida. Era um pândego. E seu lugar na história também estava garantido, sobretudo, pela incansável luta por maior segurança dos carros e dos autódromos. A Balestre muitos pilotos devem sua vida.

Mas não. Balestre resolveu falar mais do que devia. Perdeu uma grande chance de ficar calado.

O ABUTRE FELIZ – 03/11/1996

Já vi algumas tragédias e talvez por não gostar delas resolvi um dia que iria trabalhar com esportes, futebol, corridinhas de carros, joguinhos olímpicos, essas coisas que no máximo geram meia dúzia de lágrimas despretensiosas por uma vitória ou uma derrota.

Pouco mais de dois anos atrás dei de cara com a maior desgraça de todas, aquele fim de semana cinzento de Imola e tudo que aquele muro representou. Foi quando vi pela primeira vez alguém morrendo na minha frente, sensação desagradável, diga-se. E no dia seguinte vi o segundo morrendo, o que já era o bastante para trinta anos de vida, minha cota estava esgotada.

Anteontem eu estava acordando, às oito e meia da madrugada, quando ouvi no rádio o repórter Aluane Neto, da Jovem Pan, que sobrevoava a cidade para dar informações sobre o trânsito, fazer um dos relatos mais dramáticos que já ouvi. Na verdade foi minha mulher, já acordada, quem levou a notícia aos meus neurônios adormecidos. Caiu um avião, ela gritou do banheiro. Como caiu um avião?

Nós, jornalistas, temos pouco do que nos orgulhar, e mesmo o único orgulho, de ser jornalista, é muitas vezes discutível. Mas é o que nos resta, enfim. Em São Paulo, além de escrever sobre corridas de automóveis, sou também o que se chama de âncora de um noticiário diário na mesma Jovem Pan. Meu programa começa às cinco e meia da tarde. O resto do dia me considero um repórter, gosto da coisa, de falar para muita gente ouvir, ou ler.

E foi como repórter que em quinze minutos levantei, tomei um café morno, uma chuveirada, montei na minha moto equipado apenas com um telefone celular que quase nunca funciona e saí de casa feito louco. Moro mais ou menos perto do aeroporto de Congonhas, uns dez quilômetros, no máximo, de onde caiu o Fokker da TAM, que até aquele momento, quinze para as nove, era um jatinho, ou um Boeing, ou ainda um Jumbo, ninguém sabia exatamente. Eu não sabia nem onde tinha caído.

Passei quatorze horas no ar, com um microfone na mão e um fone no ouvido. Vi corpos carbonizados, mutilados e destroçados. Vi sangue e destruição, senti o cheiro da morte e da vida dos que se salvaram, falei com gente que nunca mais vou ver, conheci o drama de pessoas que nada têm a ver com minha vida, minhas viagens, autódromos, hotéis e motores.

Não sei bem porque estou falando de uma experiência tão pessoal, que poderia ficar só comigo, afinal quem se importa com o que pensa um cara que passa o ano atrás de pilotos? Voltei para casa à meia-noite, olhei no espelho e me perguntei por que, diabos, não derramei uma lágrima por cem mortos. Por que, caramba, não fiquei sequer chocado ao ver restos de carne queimada que um dia foram vidas, como a minha, como a sua. E, sobretudo, me perguntei por que, no fundo, sentia uma satisfação muito íntima de ter cumprido o que acho ser um dever, por mais sórdido que possa parecer esse pensamento.

E confesso que não me culpei por nada, nem pela ausência quase absoluta de sentimentos, nem pela frieza da ação, confesso que dormi como sempre durmo, que jantei sem nenhum embrulho no estômago, e que acordei no dia seguinte como sempre acordo, atrasado, correndo, telefonando, lendo os jornais enquanto mastigava uma torrada com requeijão. Não me culpo, porque sei que não sou um abutre ávido por tragédias, e porque em um momento, em apenas um, me senti humano. Foi quando olhei, no escuro, a janela aberta de uma casinha geminada, o quarto que sobrou debaixo da turbina, com o vento batendo de leve nas cortinas simples de gente pobre, um beliche e um berço, intactos. Dali, eu soube, saiu um bebê de um ano e meio vivo, inteirinho da silva. Isso me deixou feliz. É um alento saber que ainda se pode ficar feliz por alguma coisa.