CONSPIRAÇÕES – 14/03/1997

Desconfio que Eddie Irvine foi contratado por um consórcio formado pelo Bernie Ecclestone, pela Mercedes e pelas emissoras de TV que transmitem o Mundial de Fórmula 1 para 202 países (eu nem sabia que existiam tantos, mas pelo menos é o que diz a FIA). E já cumpriu muito bem seu papel na primeira corrida do ano, domingo passado na Austrália.

Consta que Irvine foi chamado duas semanas atrás para um encontro secreto num restaurante em Bolonha onde se come o melhor risoto do mundo. A voz ao telefone, metálica e alterada eletronicamente por um sintetizador, dizia que tinha uma proposta irrecusável para o irlandês. Irvine topou comparecer à reunião, desde que pagassem a conta.

Assim foi. O encontro aconteceu numa mesa de canto do tal restaurante e Eddie logo identificou seu contato. Ele vestia um capote escuro, óculos enormes e usava um bigode evidentemente falso, pois era escuro e os cabelos do sujeito estavam para lá de grisalhos.

Irvine também foi disfarçado, mas quando entrou no restaurante notou-se um certo zum-zum-zum no ar, porque sobre a peruca loira ele usava o boné de seu patrocinador. A conversa foi rápida. O sujeito, que depois soube-se que era Bernie Ecclestone, pois estava com os pezinhos no ar e pedira ao garçom uma almofadinha para colocar na cadeira, procurou ser objetivo.

Entregou a Irvine um plano de trabalho de 17 etapas, datilografado numa Remington antiga (a perícia que chegou a essa conclusão, não eu), bastante claro e de simples execução. Tivemos acesso a uma cópia. No item 1, dizia apenas: Tirar JV na volta 1 do GP da AUS. Não é preciso ser adivinho para decifrar o teor da mensagem, redigida em código tacanho. O item 2 fala alguma coisa sobre furar pneu de HH antes da largada do GP do BR e o 3 insinua uma noitada de tango até as quatro da manhã do dia do GP da ARG para o Alemão, com mulheres, se possível.

Falta apurar quem é o tal Alemão, mas as investigações apontam na direção de um certo Schumacher, não se sabe ainda ao certo se Michael ou Ralf. O acordo financeiro foi verbal, para não deixar rastros. É uma operação complicada, envolvendo ações na Bolsa de Londres e emissão de títulos públicos de vários países, um deles da América do Sul, lucro garantido, segundo o sujeito de capote e bigodes falsos.

Não há provas, mas parece que Irvine concordou, especialmente depois do argumento de seu interlocutor, de que ele não ia ganhar nada mesmo este ano, e que é melhor garantir uma aposentadoria tranquila em vez de ficar dando murro em ponta de faca.

As conexões deste plano mirabolante podem chegar à Alemanha, mas a Mercedes nega qualquer envolvimento e diz que a vitória de David Coulthard em Melbourne foi mérito do piloto e da equipe. A empresa também garante que o cara que trocou o pneu do carro do Frentzen com a velocidade de um cágado não tem relação nenhuma com o país, embora fale alemão fluentemente e torça para o Bayern de Munique. Ele apenas estudou no Goethe e aprendeu rápido, disse uma fonte não-identificada.
E se tudo isso for necessário para fazer deste o melhor campeonato dos últimos tempos, que seja assim.

ATÉ QUE ENFIM! – 28/02/1997

E vai começar de novo, até que enfim! Daqui a uma semana, na Austrália, a Fórmula 1 volta a campo. Amanhã, é a vez dos primos pobres da Indy. Serve de aperitivo.

Muita coisa aconteceu nos últimos três meses, o período de pit stop desta coluna. Mas dá para resumir. Tirando a papagaiada das apresentações de carros novos, cada vez mais sofisticadas e de gosto cada vez mais duvidoso (teve até show das Spice Girls na festa da McLaren), notícia boa pra valer foram poucas.

A mais chocante de todas foi a compra da Ligier por Alain Prost. Não que fosse algo inesperado, mas o egocentrismo do anão narigudo extrapolou os limites do bom senso. A equipe já mudou de nome e virou Prost Grand Prix. Imaginem se quando o milionário árabe Mansour Ojeh comprou a McLaren tivesse a mesma idéia: Mansour Racing. Um horror. Ainda bem que o homem se mancou.

Para conseguir a aprovação da mudança do nome, a Peugeot, parceira de Prost a partir de 98, prometeu a Eddie Jordan (que relutava em assinar a autorização) a continuação do fornecimento de seus motores em 98. Gozado vai ser escutar as transmissões das provas no rádio e na TV: Olha lá o Panis! Rodou e bateu a sua Prost! Sua Prost? Eu nunca vou me acostumar com isso.

De novidade, também, surgiu a pintura da McLaren, que ficou linda em prateado. No mais, alguns estreantes desconhecidos, como o Shinji Nakano na Ligi…, digo, na Prost, o Jarno Trulli na Minardi, o Vincenzo Sospiri na Lola e outros mais famosos, como o Ralf Schumacher na Jordan, que pintou uma cobra horrorosa na lateral de seus carros.

Os testes de inverno mostraram aquilo que todo mundo já está acostumado a ver: a Williams andando na frente, a Benetton querendo fazer algum barulho e a Ferrari com uma droga de carro, mais uma vez. Mas, pelo menos, a equipe italiana se livrou do projetista John Barnard, o maior enganador das pranchetas de que se tem notícia.

E como é começo de temporada, não dá para fugir dos prognósticos. No fim do ano, me cobrem e vibrem com cada erro. A Williams vai ganhar a maior parte das corridas, mas a divisão de pontos entre Villeneuve e Frentzen vai ajudar Schumacher, que vai tentar jantar a dupla pelas bordas. Alesi e Berger vão quebrar e bater muito, como sempre, sem ganhar nada. A McLaren prateada sai do jejum de três anos sem vitórias. Rubinho, Diniz e Rosset terão um ano de provações. Equipe por equipe, entre os brazucas, a Arrows do Pedro é mais forte e estruturada. Mas o carro quase não andou nos treinos. Barrichello, por outro lado, testou bastante e está confiante em não dar vexame na Stewart. Ricardo, por sua vez, luta para classificar a Lola para o grid em Melbourne, domingo que vem. Se conseguir, dá uma festa – e eu espero ser convidado.

Quanto à Fórmula Cart Indy Mundial PPG Series (ainda não sei como chamar, confesso), vai dar Zanardi e Vasser no começo. Entre os brasileiros, apostaria no Gugelmin, sem muita convicção. O resto vai sofrer. E até sábado, na corrida de verdade (quá-quá-quá!).

CARTA AO MANÉ – 20/12/1996

Pois é, Mané, quanto tempo, não? Um ano, dez anos, um século, uma vida? Sei lá, mas a gente só podia ter se reencontrado mesmo desse jeito, numa arquibancada, onde a gente se conheceu, numa daquelas manhãs de domingo no Canindé, lembra?, o estádio não tinha nem iluminação, a gente jogava de manhã.

Foi com o Cruzeiro ou o Atlético? Acho que com o Atlético, você me achou no meio de um monte de gente no Morumbi, nem sei como, eu engordei um pouco, perdi alguns cabelos, estou diferente. Mas você tá igualzinho, Mané, não mudou nada.

Pois é, Mané, tanto tempo, você casou, tem duas filhas, eu também casei, lembra da Thais?, não?, bom, então faz muito tempo mesmo. E a padaria?, você continua lá na Lapa?, claro que eu lembro onde era, qualquer hora apareço lá, nem adianta me dar o telefone que não tenho caneta aqui. Não, não tô famoso nada, que é isso, você é que tá bem. Pois é, a gente nunca mais se viu, tanto tempo, nesse tempo todo eu rodei o mundo atrás de corridas de Fórmula 1, trabalhei aqui e ali, mas de vez em quando vou num joguinho, claro que vou, você é que sumiu.

Lembra, Mané?, 78, 79, não sei direito, a gente ficou uns 30 jogos sem ganhar, e quando ganhou do Botafogo de Ribeirão no Canindé, três a um, rapaz!, a gente comemorou como se fosse um título. Três gols do Caio, lembra? E tantos jogos, tantas viagens, tantas alegrias, lembra aquele dia que você invadiu o campo pra bater no juiz contra o Corinthians?, também, aquele pênalti, tinha mais era que apanhar mesmo.

Até o dia que você disse nunca mais vou a um estádio, nunca mais vejo um jogo, não aguento mais. Foi contra o XV de Jaú? Ou foi um zero a zero com a Sãocarlense? Ou aquela vez que fomos em quatro num ônibus até Ribeirão Preto, pra ver um jogo com o Comercial? Não lembro, não lembro, mas um dia você falou que nunca mais, chega.

Pois é Mané, e olha a gente aqui, quem diria, rapaz…

É, eu fui ao Mineirão e fui ao Olímpico, também. Você precisava ver, a gente espremidinho num canto do estádio, aquele mar de gente gritando e a gente lá, e quanto orgulho, Mané, quanta alegria de gritar Lusa, Lusa, Lusa!, mesmo sabendo que ninguém ouvia, só a gente, mas sempre foi assim mesmo, não foi?

Você dizia que nunca ia dar, mas olha só, Mané, deu, a gente chegou lá, sim, e foi lindo, inesquecível. Quem não foi ao Mineirão e ao Olímpico não viveu, eu dei agora pra citar Nelson Rodrigues, eu vivi, isso ninguém tira de mim. Mas que tá doendo, rapaz, ah, tá doendo, tá doendo muito. Eram só cinco minutos, não precisava ser assim.

Pois é, Mané, a gente chegou. Mas foi tão triste, tão dolorido, aquela bola entrando estilhaçou meu coração, me feriu de morte, chorei que nem criança, e a gente tinha prometido que não ia chorar mais, nunca mais. E eu chorei abraçado ao meu irmão, é ele mesmo, o Julinho, ele tinha uns cinco anos da última vez que você viu, tá grande agora, vai entrar na faculdade. Ele é que nem a gente, Mané, e tem um monte de caras como nós, e todos eles choraram.
Bom, a gente se vê por aí, eu passo na padaria, pode deixar. Não, hoje não, qualquer dia desses, agora não. Foi muito triste, Mané.

Nesta minha última coluna do ano, eu não falei de F-1, como não falei nas últimas duas ou três. Não dava para fingir que eu estava pensando em corridas com minha cabeça voltada para um jogo, para os 90 minutos da minha vida. E eu fiz questão de deixar por escrito o que senti nos últimos dias, as alegrias enormes e a tristeza devastadora de um cara, como a maioria neste país, apaixonado por futebol. Não há nada mais parecido com a vida do que um jogo de futebol, escreveu Albert Camus. Não mesmo.

A todos que me acompanharam pelo mundo neste ano, um ótimo Natal e um grande 97. Em fevereiro eu volto. E antes que me perguntem, o Mané existe, sim, tem uma padaria na Lapa, e eu não o via há uns dez anos, há uma vida.

VAI LUSA, VAI SER FELIZ NA VIDA – 13/12/1996

Eu estava em Silverstone em meados de julho do ano passado, sábado à noite, dia do meu aniversário. Eu sempre passo o aniversário na Inglaterra, dia 15. Coincide com a corrida. Como sempre faço há anos, quando estou fora por causa da Fórmula 1, telefonei para o Brasil para saber o resultado de um jogo da Portuguesa. É uma das coisas que mais me angustia, saber que a Lusa está jogando longe de mim. Eu não sossego enquanto não sei o resultado, seja uma decisão ou uma partida de terceira rodada, não importa.

(Gosto muito de futebol, é o esporte pelo qual sou realmente apaixonado, não perco um jogo da minha Lusinha quando estou por aqui, e vou de arquibancada, com a camisa e tudo, nunca usei uma credencial de jornalista para entrar num estádio.)

Naquele dia, lembro bem, eu tinha ido ao autódromo com a camisa da Portuguesa, a minha forma de torcer à distância num jogo muito importante, contra o Corinthians. Os estrangeiros não entenderam nada. Bastava um empate para irmos à final, o que não acontecia desde o Campeonato Paulista de 85. Já era bem tarde na Inglaterra quando liguei para a Jovem Pan, onde também trabalho, e perguntei para o pessoal da central técnica, com o coração na mão, quanto tinha terminado.

Estava zero a zero e faltavam poucos minutos para acabar. Eles me colocaram a transmissão direto do Pacaembu pela escuta, e eu fiquei ouvindo os últimos minutos. E no último minuto o Corinthians fez um gol, do Bernardo, eu acho, numa falha esquisita do Paulo César, um goleiro que não falhou o ano inteiro, só nos dois jogos com o Corinthians. Foi o pior aniversário da minha vida.

Estou lembrando essas coisas hoje porque amanhã, domingo, a Portuguesa estará reescrevendo sua história em Porto Alegre. Confesso que já não imaginava viver o bastante para ver a Lusa numa final de Campeonato Brasileiro. Muito menos assim, com um time que encantou o país, virou a namoradinha de São Paulo, que parece a turma do Asterix contra o Império Romano. Uma Portuguesa, querida, simpática, alegre, que não dá um pontapé, que me encheu de felicidade nos últimos dias.

Estive no Mineirão domingo passado, tomei chuva quarta-feira no Morumbi, chorei feito criança em Belo Horizonte e em São Paulo de novo, e sei que amanhã lá no Olímpico, qualquer que seja o resultado, vou chorar também. Serão lágrimas de torcedor, aquelas sinceras que aliviam o corpo e a alma, ganhe ou perca.

A Portuguesa nunca foi tão longe, e nunca esteve tão perto do coração de todo mundo. E só nós, os poucos que torcemos mesmo para a Portuguesa, nós que sempre fomos ao Canindé, nós que vimos aqueles empates com o Noroeste ou o XV de Piracicaba numa quarta-feira gelada à noite, só nós sabemos o que vai representar um título brasileiro, que está tão próximo, que se faz quase real.

Vai lá, Lusa, vai escrever tua história, vai. Vai ser feliz. Vai ser campeã na vida.

EU SÓ QUERO SABER DA LUSA – 06/12/1996

Vocês não fazem ideia do sacrifício que é escrever sobre Fórmula 1 numa semana em que o meu time está a um zero a zero da final do Campeonato Brasileiro. Quinta à noite fui ao Morumbi, perdi a voz pela segunda vez em duas semanas, hoje à tarde vou para Belo Horizonte, se formos para a decisão, vou até o inferno para ver a Portuguesa.

Aliás, como só penso e falo na Portuguesa nos últimos dias, decidi escrever hoje sobre a Portuguesa, mas isso não é justo, meu negócio é corrida, embora eu considere fundamental dizer pelo menos uma coisa: essa choradeira de quem ficou fora do campeonato é ridícula e egoísta. No ano passado, aqui em São Paulo, a Portuguesa ganhou o primeiro e o segundo turnos, acabou o campeonato com mais pontos do que todo mundo, e não foi campeã. E ninguém falou nada sobre injustiças e fórmulas obtusas, porque os finalistas foram Palmeiras e Corinthians, e contra esses dois ninguém fala nunca.

Portanto, vão todos caçar sapos.

E agora a F-1, num ritmo de agência de notícias para caber tudo. Paris: Ligier contrata o japonês Shinji Nakano, 25 anos, para ser o companheiro de Olivier Panis. Foi uma exigência da Honda. Londres: Jordan confirma teste para Nigel Mansell, dias 11 e 12 em Barcelona. Se ele couber no carro, disputa o próximo Mundial. Paris de novo: sai o calendário da temporada 97, sem muitas novidades, exceto o encerramento em Portugal, dia 19 de outubro, e a esperada troca de Nürburgring por Zeltweg, na Áustria.

Londres mais uma vez (as coisas só acontecem em Londres e Paris): a Stewart Grand Prix promete mostrar seu carro terça-feira, com a presença de Rubens Barrichello na capital inglesa. E finalmente, adivinhem, Paris: divulgada a lista dos pilotos inscritos para o Mundial de 97. Pedro Paulo Diniz corre com o número 2 e Barrichello, com o 22. A Ferrari terá os números 5 e 6. A Lola se inscreveu, mas ainda não anunciou os pilotos. Ricardos correm atrás das vagas, o Rosset e o Zonta.

E tchau, porque sábado que vem eu espero estar falando como finalista. Se não, meu humor estará insuportável e eu não recomendo a leitura das minhas colunas por uns dois ou três meses.

QUEM É O CULPADO? – 29/11/1996

Pela quarta ou quinta vez desde o dia primeiro de maio de 94, a imprensa italiana jogou no ventilador nomes de prováveis indiciados pelo acidente que matou Ayrton Senna. Nesta semana, talvez pela falta de notícias melhores, todo mundo resolveu comprar a versão divulgada pela agência de notícias ANSA. Os informes de Bolonha garantiam que seis pessoas iriam a julgamento já no início de 97.

São elas: Frank Williams, Patrick Head e Adrian Newey, pela Williams (os dois últimos na condição de projetistas do carro e, portanto, responsáveis pela coluna de direção que se rompeu); Federico Bendinelli e Giorgio Poggi, integrantes da administração ao autódromo de Imola; e Roland Bruynseraede, diretor de prova da FIA. Os seis serão acusados, de acordo com o resultado da investigação conduzida pelo promotor Maurizio Passarini, de homicídio culposo. Podem pegar até sete anos de prisão. Passarini já teria enviado seu pedido ao juiz de instrução do caso, Diego di Marco.

A imprensa explorou como quis os boatos lançados pela ANSA, que não cita suas fontes e não conseguiu falar com os magistrados de Bolonha. Frank Williams atrás das grades, Projetista na cadeia, Assassinos na prisão, foram alguns dos títulos que vi por aqui em jornais brasileiros, em chamadas de rádio e reportagens na TV.

Já se vão quase três anos da morte de Senna. Ninguém foi preso e nem será. Não vai acontecer nada, simplesmente porque não há nada para acontecer. Não faz sentido acusar de assassinato o dono de uma equipe por um problema mecânico num carro. Não houve negligência da Williams, quem conhece um mínimo de Fórmula 1 sabe disso. Senna pediu as modificações no sistema de direção que, segundo as investigações, levaram seu carro direto para o muro da Tamburello. E a Tamburello era daquele jeito porque os pilotos, Senna inclusive, nunca reclamaram dela.

A histeria da caça às bruxas, da busca de um culpado, tem que ser estancada. Senna não foi assassinado, portanto não há assassinos. Senna morreu porque era piloto de Fórmula 1 e ganhava a vida correndo a mais de 300 km/h. Poderia ter se salvado não fosse o azar de uma barra da suspensão perfurar a viseira de seu capacete. Outros ainda morrerão, assim é o automobilismo. Assassinos são os que desviam dinheiro da saúde enquanto bebês morrem nos hospitais brasileiros. Esses ninguém processa ou acusa. Este país precisa pensar duas vezes antes de falar bobagem.

GO, SPEED, GO! – 22/11/1996

Hoje eu vou revelar um segredo. Sou apaixonado pela Trixie, a namorada do Speed. Sim, dele mesmo, do Speed Racer, o melhor piloto do mundo. Magrinha, olhos amendoados, pernas longas, cabelos chanel, Trixie é meu amor platônico. E Speed, meu grande ídolo. Lembrei dele hoje porque passei numa loja de CDs e encontrei um disco com remixes da musiquinha do Speed, “Go, Speed Racer, go!”, lembram?

Nunca entendi porque Speed não chegou à Fórmula 1 e sempre se manteve fiel a essas corridas esquisitas em ilhas exóticas contra gangues de adversários, corridas com centenas de carros que se repetem a cada curva, o maior barato do mundo. Nunca vi Speed num monoposto, talvez porque Trixie insiste em acompanhá-lo a todas as corridas e porque o Mach 5 precisa de um porta-malas para carregar o Sprindle, seu irmão mais novo que aqui virou Gorducho, e o chimpanzé Chim Chim.

Speed seria páreo para Senna, Prost, Piquet e Schumacher, os maiores que vi. O Mach 5, é uma obra-prima da engenharia automobilística, projetado e construído por seu pai, Pops Racer. Vivo atrás de uma miniatura, se alguém souber onde encontro, me avise. Daria um pau na Ferrari e na McLaren fácil, fácil. Não precisa nem de telemetria, porque quando o Speed quer falar com os boxes ele manda aquela pomba mecânica, o “go bird”, que leva as mensagens necessárias. No mais, Speed acelera pra burro.

Speed Racer é o personagem da TV que eu adorei a vida toda. Seus desenhos ainda passam de vez em quando, na versão original em inglês, no Cartoon Network. Ele foi criado nos anos 50 por um japonês, Tatsuo Yoshida, e chegou à TV nos EUA em 67. Seu nome original era Go Mifune, de onde vêm o “M” no capacete e o “G” no peito. Go, em japonês, significa o número cinco ou então “garoto”. O carro, originalmente, se chamava Mach Go Go. Nos EUA, virou Mach 5.

A Trixie também usa um “M” na camisa, que vem de seu nome em japonês, Michi Shimura. Eu prefiro Trixie. E tem também o Sparky, mecânico e amigão do Speed. E, claro, o Racer X, o Corredor X, misterioso, agressivo ao volante, na verdade o irmão mais velho de Speed — mas isso ninguém sabe, é um segredo que só ele, o Corredor X, e nós, os fãs, conhecemos.

Neste exato momento estou ouvindo o CD. é bem legal, foi lançado pela Natasha Records, e se você encontrar, compre. Speed é um herói da velocidade, um ás das pistas, um garotão que faz das corridas sua vida, e que quase sempre ganha. Até nisso ele é bom, porque Speed não ganha sempre, muitas vezes é derrotado, e é nas derrotas, como se sabe, que se aprende mais.

Nos episódios da TV, Speed passa pelos maiores perigos, quase morre de vez em quando, mas no fim sempre se encontra com a Trixie. Essa é a única parte que eu não gosto. Morro de ciúmes.

OINC-OINC – 15/11/1996

Coisa gozada. Quarta-feira passada fui ao Morumbi assistir Portuguesa e Palmeiras, ganhamos fácil, e na saída do estádio levei um pontapé de um palmeirense cretino só porque eu estava com a linda camisa do meu time.

No dia seguinte viajei para os Estados Unidos para torrar uma grana e muita gente ligou meu sumiço ao pontapé suíno. Teve gente que achou que eu estava internado no Albert Einstein.

Não estou, mas depois de seis dias de Miami, seria o caso. Cheguei com a síndrome do shopping, porque Miami e redondezas nada mais é do que um imenso shopping cercado de estacionamentos.

Os caras só vendem e compram, ninguém faz mais nada além disso. E vendem as maiores idiotices do mundo, como um bip que apita se você não abaixa a tampa da privada, um chaveiro onde você grava o lugar onde parou o carro para não se esquecer, um haltere que quando levanta conta “one-two-three”… Comprei os três.

Voltei para votar nesta sexta-feira e na minha mesa repousavam vários faxes. Pelas estatísticas (os americanos adorariam), 36,4% eram mensagens de estimo as melhoras, 21,9% sobre Fórmula 1, 33,7% sobre corridas em geral e o resto era engano. Vamos, então, aos 21,9% de Fórmula 1.

Primeiro, da Sauber. Segunda-feira, a equipe suíça anunciou uma parceria com a Ferrari para ter os mesmos motores V10 da equipe italiana no ano que vem. Um acordo de transferência de tecnologia. No dia seguinte, a Ferrari cancelou o trato, porque não gostou do anúncio precipitado.

Quinta-feira, dia 14, o Hill fez o primeiro teste com o pessoal da Arrows, em Suzuka, usando um carro Ligier com pneus Bridgestone. Bateu e arrebentou o carro de testes. Começou bem. Também na quinta, a “Auto, Motor und Sport”, revista alemã, disse que a BMW e a Porsche vão voltar à F-1. A BMW com a Williams e a Porsche com a Benetton, ambos a partir de 1999. Ainda segundo a revista, em 98 as duas equipes deverão usar os motores Renault, mesmo com a fábrica afastada da categoria. Registrado.

A Minardi, sexta-feira da semana passada, fechou com a Hart e vai ter esses motores em 97. Tarso Marques pode correr pela equipe se der certo uma negociação tentada por Flavio Briatore: mandar o Alesi para a Jordan e colocar no seu lugar o Giancarlo Fisichella, que por sua vez está escalado para disputar o próximo Mundial na Minardi.

E é só. Fui para Miami, trouxe um monte de quinquilharias, comprei uma TV que não sei se funciona, comi centenas de asas de frango e hambúrgueres, voltei e coloquei o noticiário em dia.

Tchau e até a semana que vem, porque agora vou chutar um palmeirense pra ver se ele faz oinc-oinc.

BALESTRE FICOU GAGÁ – 08/11/1996

Todo mundo se lembra de Jean-Marie Balestre. Há sete anos ele se transformou no inimigo número 1 do Brasil, ele e seu protegidinho, Alain Prost. Lembro que naquela época eu vivia discutindo com meu irmão mais velho, fã de carteirinha do nanico, tinha até um pôster no quarto dele. Não que eu fosse um sennista histérico, como tantos que conheci, mas para contrariar o irmão mais velho a gente torce até pro Mansell. E torcer pro Senna era fácil, o homem ganhava tudo etc. tal.

O auge do ódio nacional a Balestre ocorreu no final de 89, depois daquela corrida histórica de Suzuka. Senna ia passar Prost na chicane, que jogou o carro em cima, abandonou e ficou roendo as unhas até o final da corrida, porque Ayrton foi empurrado pelos comissários, cortou a chicane, trocou o bico, saiu dos boxes como um louco, ultrapassou Nannini na mesma chicane e ganhou o GP do Japão numa recuperação memorável.

Ganhou e não levou. A direção de prova, com razão, desclassificou Ayrton porque ele recebeu ajuda externa e na volta da batida retornou à pista pela área de escape. Foi uma desclassificação, do ponto de vista legal, absolutamente correta. Do ponto de vista filosófico, injusta — principalmente porque Prost, o vilão da história, conquistou o título por causa da desclassificação de Senna.

O Brasil achou e elegeu o culpado rapidinho: Balestre, francês como Prost, presidente da FIA e da extinta Fisa, a quem respondia a direção de prova. É claro que Balestre não colocou o dedo na decisão de desclassificar Senna, nem precisava, porque a situação de ilegalidade era muito clara. Mas nesta semana, sem mais nem menos, Balestre resolveu dizer que deu uma mãozinha para Prost. Senna, na época, acusou o dirigente de manipular o campeonato, levou um gancho de seis meses que só não foi cumprido porque ele pediu desculpas publicamente.

As declarações de Balestre agora dão razão a Senna, dirão os sennistas. Balestre está gagá, respondo eu. Velho, esquecido, encostado num cargo decorativo da FIA, Jean-Marie, que no convívio pessoal é um sujeito sensacional, engraçado, espirituoso, resolveu aparecer. Quis dizer que quando era presidente determinava quem podia ou não ser campeão. Bobagem. Balestre nunca teve tamanho poder. Ele poderia entrar para a história apenas como o bruxo autoritário e espalhafatoso que esteve em Interlagos, em 90, todo vestido de preto, dizendo sentir prazer ao enfrentar a massa enfurecida. Era um pândego. E seu lugar na história também estava garantido, sobretudo, pela incansável luta por maior segurança dos carros e dos autódromos. A Balestre muitos pilotos devem sua vida.

Mas não. Balestre resolveu falar mais do que devia. Perdeu uma grande chance de ficar calado.

O ABUTRE FELIZ – 03/11/1996

Já vi algumas tragédias e talvez por não gostar delas resolvi um dia que iria trabalhar com esportes, futebol, corridinhas de carros, joguinhos olímpicos, essas coisas que no máximo geram meia dúzia de lágrimas despretensiosas por uma vitória ou uma derrota.

Pouco mais de dois anos atrás dei de cara com a maior desgraça de todas, aquele fim de semana cinzento de Imola e tudo que aquele muro representou. Foi quando vi pela primeira vez alguém morrendo na minha frente, sensação desagradável, diga-se. E no dia seguinte vi o segundo morrendo, o que já era o bastante para trinta anos de vida, minha cota estava esgotada.

Anteontem eu estava acordando, às oito e meia da madrugada, quando ouvi no rádio o repórter Aluane Neto, da Jovem Pan, que sobrevoava a cidade para dar informações sobre o trânsito, fazer um dos relatos mais dramáticos que já ouvi. Na verdade foi minha mulher, já acordada, quem levou a notícia aos meus neurônios adormecidos. Caiu um avião, ela gritou do banheiro. Como caiu um avião?

Nós, jornalistas, temos pouco do que nos orgulhar, e mesmo o único orgulho, de ser jornalista, é muitas vezes discutível. Mas é o que nos resta, enfim. Em São Paulo, além de escrever sobre corridas de automóveis, sou também o que se chama de âncora de um noticiário diário na mesma Jovem Pan. Meu programa começa às cinco e meia da tarde. O resto do dia me considero um repórter, gosto da coisa, de falar para muita gente ouvir, ou ler.

E foi como repórter que em quinze minutos levantei, tomei um café morno, uma chuveirada, montei na minha moto equipado apenas com um telefone celular que quase nunca funciona e saí de casa feito louco. Moro mais ou menos perto do aeroporto de Congonhas, uns dez quilômetros, no máximo, de onde caiu o Fokker da TAM, que até aquele momento, quinze para as nove, era um jatinho, ou um Boeing, ou ainda um Jumbo, ninguém sabia exatamente. Eu não sabia nem onde tinha caído.

Passei quatorze horas no ar, com um microfone na mão e um fone no ouvido. Vi corpos carbonizados, mutilados e destroçados. Vi sangue e destruição, senti o cheiro da morte e da vida dos que se salvaram, falei com gente que nunca mais vou ver, conheci o drama de pessoas que nada têm a ver com minha vida, minhas viagens, autódromos, hotéis e motores.

Não sei bem porque estou falando de uma experiência tão pessoal, que poderia ficar só comigo, afinal quem se importa com o que pensa um cara que passa o ano atrás de pilotos? Voltei para casa à meia-noite, olhei no espelho e me perguntei por que, diabos, não derramei uma lágrima por cem mortos. Por que, caramba, não fiquei sequer chocado ao ver restos de carne queimada que um dia foram vidas, como a minha, como a sua. E, sobretudo, me perguntei por que, no fundo, sentia uma satisfação muito íntima de ter cumprido o que acho ser um dever, por mais sórdido que possa parecer esse pensamento.

E confesso que não me culpei por nada, nem pela ausência quase absoluta de sentimentos, nem pela frieza da ação, confesso que dormi como sempre durmo, que jantei sem nenhum embrulho no estômago, e que acordei no dia seguinte como sempre acordo, atrasado, correndo, telefonando, lendo os jornais enquanto mastigava uma torrada com requeijão. Não me culpo, porque sei que não sou um abutre ávido por tragédias, e porque em um momento, em apenas um, me senti humano. Foi quando olhei, no escuro, a janela aberta de uma casinha geminada, o quarto que sobrou debaixo da turbina, com o vento batendo de leve nas cortinas simples de gente pobre, um beliche e um berço, intactos. Dali, eu soube, saiu um bebê de um ano e meio vivo, inteirinho da silva. Isso me deixou feliz. É um alento saber que ainda se pode ficar feliz por alguma coisa.