Diário de Viagem: anos de 1996 e 1997

JAPÃO (12.10.1997) – Suzuka, Brasil

O GP do Japão sempre foi um dos mais complicados para os jornalistas do mundo inteiro, que atravessam o planeta para chegar à pequenina Suzuka, a mais de 400 km de Tóquio. Há a barreira da língua, quase intransponível. É lenda a história de que muitos japoneses falam inglês. Ninguém fala. Nos hotéis, via de regra, os funcionários sabem, no máximo, contar até dez e dizer good morning.

A fonética do idioma é muito diferente e o falar inglês torna-se uma tarefa penosa para a maioria dos japoneses. Num lugar como este, então, é virtualmente impossível se comunicar. Se não bastasse, há as distâncias e a precariedade de acomodação. Por isso, há anos que é assim, a imprensa se espalha por cidades como Tsu e Yokaishi, a uma hora e meia, de ônibus, do circuito.

Azar de todo mundo, menos dos brasileiros. Depois de uma década, descobrimos, terça-feira, que em Suzuka está a mais numerosa comunidade brasileira do Japão, com cerca de cinco mil descendentes trabalhando nas fábricas da região. São 200 mil no país. Aqui há açougues, pastelarias e restaurantes onde se fala português. A turma faz baile de carnaval e vai em caravana a Nagoya assistir, por exemplo, a um show de Leandro & Leonardo.

Eu estava com uma reserva em Tsu, mas nem vi a cara do hotel. Na chegada, no aeroporto, conheci o Giba, um rapaz de Curitiba que trabalha para uma empreiteira que coloca brasileiros nas fábricas locais. Há seis anos no Japão, ele já nem passa mais por estrangeiro. Fala japonês sem sotaque, assim como Cristina, sua mulher, e a Hitome, sua filha, uma linda garotinha de sete anos. Giba me convidou para ficar em sua casa, a um quilômetro da pista. Aceitei.

Ganhei uma família no Japão. A F-1 tem dessas coisas. O Giba, o Arnaldo, seu irmão, a Vânia, que é cunhada, os amigos David e Farol (se chama Renato, mas ninguém o conhece pelo nome aqui), o Daniel, que é gerente do boliche da cidade… Há cinco dias eles praticamente não dormem, mudaram seus turnos de trabalho para, durante o dia, fazer companhia a mim e aos outros quatro brasileiros que estão aqui para cobrir a corrida.

Já tenho até a chave de casa, faço meu café da manhã e vou de bicicleta para o autódromo. À noite,
assisto à novela das oito e ao Jornal da Globo na TV. Vi até o jogo do Vasco com o Cruzeiro, sempre com um dia de atraso, mas o que é um dia, afinal?
Com eles, descobri os fascínios do Japão e seu dia a dia. Não há espaço neste texto para contar tudo que já aprendi e passei a entender sobre este país, o japonês e seus descendentes, em tão pouco tempo. Parece que vivo aqui há anos.

Tudo, da comida à educação, das regras de trânsito aos sistemas de saúde, das reverências ao gesto simples de tirar os sapatos ao entrar em casa, tudo é particular e diferente do nosso jeito ocidental de encarar o mundo e a vida.

Não é a primeira vez que venho ao Japão. Mas pela primeira vez tenho a chance de viver o país. E, mais uma vez, constato que o brasileiro, esteja onde estiver, é de uma generosidade do tamanho do universo, tenha ele olhinhos puxados ou não. Você, que me lê agora, talvez não faça ideia do que é ter um amigo como o Giba do outro lado do mundo. Paga tudo, as horas intermináveis em aeroportos e aviões, a distância de casa, os dias longe dos amigos e da família, aquilo que a F-1 exige daqueles que a seguem.
Arigatô, Japão.

LUXEMBURGO (28.09.1997) – Bazar do Gomes

Acho que ainda vai dar tempo, só vou embora segunda-feira. Mandei um anúncio para os classificados do jornal local, uma gazeta de Nürburg, propondo a troca de algumas mercadorias. Minhas luvas de lã novinhas em folha por uma jarra de cafeteira, que a minha quebrou. Um gorro, igualmente de lã, marrom-café, por uma caneca de cerveja. Pode ser usada.

Comprei também um cachecol, que não usei, claro, e aceito em troca dois potes de geleia, ou então uma lata de Ovomaltine nova. As ceroulas e as duas camisetas térmicas, isso vai num pacote só, estou trocando por cartões postais ou então uma coleção de selos, que nem precisa ser muito numerosa.

Pelas botas com forro de pele, estas um pouco mais caras, espero conseguir um despertador, que pode ser de campainha, ou uma vitrola, que anda difícil de arranjar. As pastilhas para garganta, o protetor dos lábios e os comprimidos para gripe, troco por três tubos de pasta de dente, sabor menta.

Como no ano passado, cometi a burrada de achar que faria frio neste fim de semana. Esta região da Alemanha é uma terra de pinguins no início do outono, pelo menos foi assim há dois anos, quando desembarquei em Nürburgring de camiseta e bermudas, vindo de Portugal, e congelei.

Desta vez, preparei-me. Em 96 exagerei, confesso, porque a corrida foi disputada em abril, estava quente. Mas neste ano não tinha erro, final de setembro, o Villeneuve disse assustado, semana passada, que ia fazer zero grau, com um pouco de sorte até neve a gente veria.

Comecei a desconfiar no começo da semana, depois de três dias em Viena. Fez muito calor e só usei a jaqueta creme de teimoso, para justificar a compra (esta vou levar para o Brasil e não foi anunciada). Na terça-feira, vi uma reportagem na TV direto de Nürburgring, a torcida chegando para acampar em mangas de camisa, sandálias, sol e um céu azul de doer. Alertei o Galvão Bueno, que estava no mesmo hotel, mas era tarde, ele já tinha comprado uma coleção de suéteres e dois pares de luva, além de um casaco de couro.

Não sei se vou conseguir minhas trocas. Nesse calor aqui, derreto se usar luvas, gorro e cachecol. Ser não puder me desfazer de nada, podem se preparar que farei um bazar em São Paulo. O Galvão, parece, está pensando em promover um no Rio, também. Preços módicos, venha correndo.

ÁUSTRIA (21.09.1997) – Vaquinhas e leite fresco

Sou a favor de pelo menos uma corrida nova por ano. Estou adorando a Áustria. Estive por aqui no mês passado, é verdade, visitando a Salzbourg de Mozart e a requintada Viena dos palácios e das valsas. Mas Zeltweg é outra história, claro, um vilarejo de dez mil habitantes. E embora não tenha castelos, nem teatros, é um cenário que faz bem para a alma.

Montanhas, muito verde, vaquinhas pastando na entrada do autódromo enquanto lá dentro máquinas de milhões de dólares aceleram os sonhos de seus pilotos… Sol, céu azul, poluição zero, gente simpática e louca para agradar, afinal é a primeira prova por estas bandas nos últimos dez anos. Festinhas, jogos de dardo no meu hotel Schweizerhof, uma pensão meio vagabunda sem banheiro no quarto, mas não faz mal.
É um GP rural, como Nürburgring ou Spa, o verdadeiro espírito da Fórmula 1. Milhares de pessoas de todos os pontos da Europa montam em seus trailers, armam suas barracas e passam três dias se conhecendo, tomando cerveja, comendo salsicha e vendo carros de corrida nas horas vagas.

De manhã, todos os dias, antes de vir para a pista, paro numa fazendinha que vende leite tirado na hora, forte, saboroso, vital. Custa dez schilings o copo, menos de um real, e é uma delícia. Dá vontade de ir a pé para o circuito, colocar um chapéu de feltro verde e meias brancas até os joelhos, suspensórios de tirolês, são apenas três quilômetros, o que só não faço porque tenho que carregar muito equipamento.

Mas é uma delícia, mesmo sem as caminhadas, que um dia vou fazer. Corrida nova, circuito desconhecido, paisagens diferentes, isso tudo é um combustível não só para nós, jornalistas, como também para pilotos e equipes, cansados de visitar sempre os mesmos lugares. Até a briguinha entre Zeltweg e Spielberg é legal. Spielberg é uma vila de dois mil pacatos habitantes em cujos limites foi construída a pista. Zeltweg, vizinha, batiza informalmente o autódromo porque em 63, quando a F-1 fez sua primeira corrida na região, o circuito ficava mesmo na cidade, num pequeno aeródromo.

Consagrou-se o nome, e o pessoal de Spielberg não gosta muito da ideia. Essas historinhas, pequenos casos, querelas entre aldeias, essas coisas fazem da F-1 um espetáculo mais humano. A Áustria é uma beleza, assim como a Holanda, a Bélgica, o interior da Europa, a Europa que não é Londres, Paris, Milão ou Barcelona. Nessas horas, trabalhar nesse negócio aqui dá gosto.

E ainda tem a corrida, hoje. Legal. Depois dela, volto ao velho Schweizerhof. Tenho um match de dardos importante, esta noite. Adotei um estilo irlandês do Ulster, disseminado em Belfast, de lançar os meus em parábola, buscando sempre o triplo vinte. Se você não faz ideia do que é isso, aprenda a jogar dardos e conversamos depois.

ITÁLIA (07.09.1997) – Regime, só segunda-feira

Comecei um regime segunda-feira passada. Como é sabido, segunda-feira é o Dia Universal do Começo do Regime, e a última segunda foi ainda mais apropriada, porque era dia primeiro. Nada muito grave. Adquiri uma barriguinha indesejável nessa vida de aeroporto-hotel-autódromo-restaurante e resolvi eliminá-la da maneira mais fácil: fechando a boca.

Foi tudo bem no primeiro e no segundo dia, grelhado com alface no almoço, sopinha à noite. Mas aí embarquei para a Itália, onde pude constatar, como se isso fosse alguma novidade, que é impossível fazer dieta num país como este.

Primeira noite, jantar no restaurante do hotel, porque já era tarde e ia ser difícil encontrar alguma coisa aberta. Na Itália, não tem jeito. Tem que comer entrada, primeiro prato, segundo prato, sobremesa e café expresso, o melhor do mundo. E o diabo do hotel tinha um restaurante excepcional.

Quando você vier até aqui, saiba que pedir apenas um pratinho de penne ou tortellini solitário ao garçom é quase uma ofensa. Como assim? Nem um carpacciozinho? Um escalope de vitela com funghi? Não quer mesmo um tiramisù? Um risoto no champanhe?

Come-se demais, bem demais, digo, na Itália. E não dá, igualmente, para radicalizar na bebida, aquele negócio de quem faz regime, só água mineral, sem gás. Vinho italiano é muito bom. E álcool engorda, todo mundo sabe. Que venha o vinho, fazer o quê?

Resultado: suspendi meu regime temporariamente. O próximo dia primeiro que cai numa segunda-feira é em dezembro. Tempo suficiente para que eu me recupere de quatro dias de Itália. Porque anteontem à noite fui a uma trattoria espetacular, La Bucca del Lupo, e, como no hotel, devorei três pratos, sobremesa e, de quebra, um digestivo, uma sambuca, nada muito pesado.

Hoje à noite está agendada uma visita ao Bice, onde, dizem, come-se de joelhos, de tão boa é a massa. Ainda tentei evitar as pastas, que também engordam, tudo que é bom engorda, e fui a uma churrascaria ontem, isso mesmo, fui comer carne no Porcão, dos mesmos donos daquele rodízio no Rio. É legal, dá para tomar caipirinha e os garçons são todos do Paraná ou do Rio Grande do Sul. Além do mais, as recepcionistas, brasileiras, são muito bonitinhas. E carne, como também é sabido, não engorda. A não ser que você coma maionese, farofa e banana à milanesa junto. Mas, estando em Milão, como não comer banana à milanesa? Acho que engordei. Pra falar a verdade, abusei um pouco do cupim, foi isso.

BÉLGICA (24.08.1997) – Casacos belgas

Tenho uns dez casacos em casa, contando jaquetas, “trench-coats”, capas de chuva e blusões em geral. Oito deles comprei aqui, em Spa-Francorchamps, num shopping improvisado em barracas na entrada do circuito. O problema é que sempre esqueço de trazer agasalhos, as corridas na Europa são realizadas sempre no verão do Hemisfério Norte, enfim, é problema meu se sempre esqueço que estou indo para Spa.
E a Bélgica é a Bélgica. Chove todos os anos, não tem erro, se houver uma única nuvem sobre a Europa, ela estará sobre a Bélgica, ou, mais precisamente, sobre Spa e Francorchamps, duas cidadezinhas simpáticas ligadas por uma estrada que faz parte de uma pista de Fórmula 1.

E faz frio, também. Por isso, todos os anos compro um casaco qualquer aqui, por mera questão de sobrevivência. É rotina. Saio do meu chalé (corrida meio campestre, essa aqui) congelando, debaixo de um toró, chego ao autódromo e compro a primeira coisa que encontro capaz de me aquecer um pouco.
Teve um ano em que essa primeira coisa foi uma jaqueta da Pacific Racing, o que afinal acabou virando uma peça de coleção, já que a equipe nem existe mais. Me contaram que foi a única vendida até hoje, porque naturalmente ninguém é louco de comprar sequer um boné da Pacific, o que dizer de uma jaqueta, ainda mais de lã grossa, daquelas que pinicam.

Tenho também uma capa com a foto do Nigel Mansell sem bigode nas costas, mas essa, confesso, usei um dia só e tentei trocar porque não sou palhaço. A moça que vendeu não aceitou de volta. Argumentei que não sabia da foto e ela me mandou procurar o Procon. Tive que gastar uns francos belgas a mais para comprar algo menos ridículo, um casacão preto, meio antiquado, com as cores antigas da Lotus, preto e dourado. Fiquei parecendo um agente funerário, mas era melhor que o Mansell sem bigode.

Neste ano, quando fazia a mala às pressas para embarcar rumo a Frankfurt (e de lá, de carro, 300 km até Spa), lembrei que estava indo para a Bélgica, e não para Mônaco ou Magny-Cours, lugares quentes, ensolarados. Malandrão, catei o casaco piniquento da Pacific, o fúnebre da Lotus, uma jaqueta (essa eu nem lembrava que tinha) azul turquesa da época da Leyton House e um guarda-chuva sensacional, ele não abre direito, mas tem Andrea Moda escrito num dos cantos. Cheguei aqui armado até os dentes.

Está um calor dos diabos. Mesmo na sexta, a chuva que caía vinha quente do céu, dava para fazer chá. Ontem, sábado, fez sol o dia inteiro. E eu não trouxe camisetas, nem bermudas, nem bonés, nem mesmo um tênis — só botas. Fui obrigado a comprar tudo nas barraquinhas, até uma T-shirt com o Villeneuve estampado. Perguntei se não tinha alguma pré-cabelo amarelo, mas não tinha. Ainda bem que aqui ninguém me conhece.

HUNGRIA (10.08.1997) – Meu relógio soviético

Minhas duas últimas semanas têm sido uma espécie de viagem no tempo. Como resolvi ficar na Europa depois do GP da Alemanha, escolhi destinos da antiga Cortina de Ferro para matar a vontade de brincar de espião dos livros de John Le Carré. É preciso certa imaginação, claro, para enxergar o Muro de Berlim onde não existe mais nada dele. Ou, então, para se sentir perseguido por um agente da Stasi no metrô de Leipzig, ou numa estação de trem cinzenta em Dresden.

A Hungria, onde estou, já não me fascina tanto. Estive aqui pela primeira vez em 91, quando os regimes socialistas caíam feito um castelo de cartas, e lembro que ainda deu para ficar encantado por alugar um Lada e ver milhares de Trabant circulando pelas ruas de Budapeste.

Isso tudo é passado, porém. Hoje virou bagunça, quando se olha para a Europa Oriental com olhos nostálgicos de um tempo em que ser comunista tinha lá seu charme. Um húngaro me contou que o primeiro comércio ocidental aberto em Budapeste foi uma loja da Adidas, e que no dia da inauguração as filas davam voltas no quarteirão. É ou não é o máximo? Agora tem um McDonald’s em cada esquina.

De qualquer forma, senti-me na década de 60 ao tentar entrar na Tchecoslováquia sem visto no passaporte. OK, República Tcheca, vá lá. Estava num trem sombrio quando os policiais tchecos, rudes e gelados como rochas, me mandaram descer na estação seguinte, ainda em território alemão. Adorei. Tirei uma foto do lugar, saído de filme preto e branco, uma estação caindo aos pedaços nos confins do que era a Alemanha Oriental.

Não fui a Praga, em consequência, mas não me importei. Àquela altura, já carregava na mala, de um jeito meio clandestino, confesso, duas preciosidades que comprei de um camelô em Berlim — e que felizmente os guardas não encontraram, creio que teria problemas para explicar sua aquisição: um pedaço do Muro, que ele me garantiu ser verdadeiro e veio até com um carimbo que confere certa autenticidade à peça, e um magnífico relógio de parede. Este, segundo o vendedor, é russo e estava num antigo submarino nuclear do Pacto de Varsóvia. Funciona à corda, mas ele me mandou ter cuidado. Há chances de que algum tipo de radiação ainda possa ser emitida. Bárbaro, não vejo a hora de contar minhas aventuras aos amigos quando voltar a São Paulo, em noites regadas pela boa vodca da terra de Lenin.

ALEMANHA (27.07.1997) – Os sem-parking

Ligo para São Paulo e me informam, sexta-feira, que o país está numa confusão danada, passeatas por todos os cantos, sem-terra, sem-teto, sem-metrô, sem-carro-importado, sem-salário, sem-emprego, sem-nada e sem-tudo. Nada mais justo, tratando-se de Brasil. E nada mais antigo, afinal não saí daí há uma década, mas no meio da semana. Já sabia das passeatas e dos movimentos, e quero mais é que as pessoas se manifestem mesmo, viver no Brasil está ficando impossível.

Vou passar 20 dias na Europa, emendar duas corridas, Alemanha e Hungria, e pelo menos terei alguns momentos de paz. Nada de Sérgio Motta, FHC, greve da PM (é um absurdo como os policiais ganham mal), Xuxa, Zagallo, Fantástico, Celso Pitta, precatórios e venda de votos. É incrível como o Brasil tem coisas ruins, também. Autoexílio. Faz bem, de vez em quando.

Sei que daqui a alguns dias vou sentir falta de tudo isso. Pensarei no caso quando estiver rodando com meu Audi alugado por estradas sem buracos, ou enquanto estiver parado no trânsito com o vidro aberto e meu relógio para fora da janela, sem medo de ser assaltado. Ou ainda ao caminhar pelas ruas de Viena, ao atravessar na faixa de pedestre, sem me preocupar em ser atropelado por um motoqueiro alucinado sem placa.

Provavelmente, daqui a duas semanas, estarei morrendo de saudades das passeatas na avenida Paulista e vou propor um movimento entre os jornalistas que cobrem a Fórmula 1, que andam muito aborrecidos com algumas medidas tomadas pela organização das corridas. Desde o ano passado, empurram-nos, os jornalistas, para estacionamentos cada vez mais distantes das salas de imprensa.

Os espaços estão sendo ocupados pelos equipamentos da TV digital do Bernie Ecclestone, o que faz de nós um grupo de “sem-parking”, uma nova categoria massacrada pelo poder econômico. Somos submetidos a uma ditadura de estacionamentos longínquos e “vans” que nos levam até os autódromos. As salas de imprensa estão sendo rigorosas também com seus horários, até as linhas telefônicas são cortadas no encerramento do expediente. Somos “sem-linha”, também.

Faremos uma passeata em Budapeste, na hora da largada, pelo meio dos carros parados no grid. Carregaremos faixas e cartazes pedindo nossos direitos. Aceitamos deixar nossos carros longe, desde que tenhamos sanduíches e cafezinho de graça. Queremos ser bajulados, também. Bonés, camisetas e chaveiros das equipes em cotas quinzenais. Hotéis mais baratos e quartos individuais. Jantares e festas em todas as corridas. Reivindicações básicas, sem negociação.

Chega de ser explorado. É preciso alguma vantagem para cobrir Fórmula 1, algo mais do que aviões e aeroportos. Queremos mordomias e adicional de periculosidade para ter que aguentar o mau-humor dos pilotos e dirigentes o ano inteiro. Vou-me transformar num líder entre a imprensa. O poder que se prepare. Jornalista unido jamais será vencido, como diz meu amigo aqui do lado, com a camiseta do Che Guevara e um passaporte finlandês. “É preciso fazer alguma coisa, porque o mundo está muito chato”, ele diz. Tem razão. Vou sugerir que se mude para São Paulo.

INGLATERRA (13.07.1997) – Diário de Viagem

Pela primeira vez desde que acompanho a Fórmula 1, abri mão de ficar num hotel para a corrida de Silverstone. Tinha até um muito legal em Northampton, a 35 km da pista, eu conhecia a recepcionista e o cara que fazia minhas torradas pela manhã. E o gerente, que sempre reservava um quartinho com janela para a rua principal da cidade, quarto antigo, com carpete no banheiro.

Mas era um inferno chegar ao autódromo, embora no ano passado eu tenha descoberto um caminho pelo meio das fazendas que me tirava da A43, a “Estrada para o Inferno”, como a chamava o cantor Chris Rea, um fanático por Fórmula 1. Reza a lenda que ele compôs a canção “Road to Hell” parado num congestionamento-monstro para Silverstone, anos atrás. Sempre foi assim: 150 mil pessoas vão para a pista de carro, não há outro jeito, pela mesma estradinha, a A43. Tempo médio para percorrer 30 km: três horas. Um inferno.

São estranhos esses ingleses, porque há outros caminhos, mas eles não sabem. Ainda bem, porque assim eu continuo pegando pista livre nas minhas fazendas. E de onde me hospedo neste ano, não são mais do que 15 minutos. Loucos, esses ingleses. Adoram um congestionamento.

Mas não é sobre o inferno da estrada que quero falar, mas sim de Samantha. Samantha é a garotinha que dorme no quarto onde estou. Aluguei, com uns amigos, uma casinha adorável em Towcester, a 8 km da pista. Casinha inglesa, de tijolinhos e quadros de cavalos e caçadas nas paredes. Típica, com lareira e janelinhas brancas e grama muito verde.

A família nos deixou a casa e a mim coube o quarto de Samantha. Ela deve ter uns oito anos. Seu quarto tem papel de parede decorado com ursinhos, quadrinhos do Dumbo e dos 101 Dálmatas e um urso Puff (lembram?) sentado numa cadeira.

Vi o retrato de Samantha na geladeira. Acho que nunca vou conhecê-la pessoalmente, mas queria dizer a ela que adorei seu quarto de criança. Cometi até a indiscrição de abrir a primeira gaveta da sua cômoda branca laqueada, sabe como é, a gente conhece as pessoas por seus objetos e hábitos, e embora seja muito nova, é claro que Samantha tem seus hábitos.

Ela tem um walkman colorido, por exemplo, e vários elásticos de todas as cores para prender seus cabelos lisos e negros. E adora lápis coloridos, tem uma coleção imensa. Não abri o guarda-roupa, até porque já vi seu uniforme da escola na foto, saia azul-marinho, camisa branca e um lencinho vermelho no pescoço. E não fica bem espiar as roupas de uma mocinha, convenhamos.

Estou dormindo na sua cama e com seu travesseiro. Todos os dias, de manhã, abro as cortinas para o sol encher de luz aquele lugar sagrado, um quarto de criança, que faz-me sentir um garoto de novo. Tenho muito a agradecer a Samantha. Ganhei uma nova amiga, e vocês não fazem ideia do que é isso quando se viaja tanto, quando é necessário conviver com desconhecidos nos lugares mais malucos do mundo para sobreviver.

Vou deixar um presente para ela. Li, numa cartinha que ela escreveu para o pai, provavelmente um trabalho de escola (está colada na parede da cozinha, a cartinha), que ela adora o inverno porque gosta de fazer bonecos de neve e porque gosta de sua casa quentinha, mesmo quando faz muito frio lá fora. Nada mais singelo e encantador. Não posso lhe dar um boneco de neve, Samantha. Mas vou achar alguma coisa para te agradecer.

FRANÇA (29.06.1997) – Banho de supermercado

Eu já não tinha mesmo muita roupa para trazer à França. Na semana retrasada, tungaram minhas malas em Miami e fiquei sem lenço, sem documento, sem calças e sem meu canivete suíço. Mas tudo bem, porque na Europa é verão, e neste fim de mundo faz muito calor nesta época do ano. Umas duas bermudas, uma calça jeans, a que sobrou, com um remendo de festa junina nos fundilhos, algumas camisetas e passaria tranquilo pelo GP da França até recompor meu guarda-roupa.
Bem, só não está nevando. Chove o tempo todo e quando a temperatura passa dos 15 graus é motivo de festa. Cadê o verão? E o inverno, no Brasil? Saí de São Paulo com 30 graus! O que está acontecendo com o mundo?

Claro que as bermudas não serviram para nada, nem para dormir. E por isso passei a manhã de sexta-feira num hipermercado comprando roupas. Nada de butiques caras, porque se me assaltarem de novo eu peço licença e mudo de planeta. Uma muda de roupas para a agitadíssima Magny-Cours não custaria tanto assim, afinal.

Aí apareci no autódromo de jaqueta nova e me perguntaram se tinha comprado na GAP, e esse suéter, é de Paris? Falei que tomei um banho de loja no Carrefour e não acreditaram. Devia ter dito que era Giorgio Armani, e ficava com fama de bacana. Não faz mal. Gostei das minhas roupas de supermercado, são quentinhas e aconchegantes. Aproveitei para adquiri um gravador novo, que o meu também ficou com os amigos da Flórida. E comprei até sabonetes, que os daqui duram mais que os daí.

Tirando isso, o tempo, o frio, a chuva, as botas molhadas, a lama e o meu carro que não anda (motor turbo diesel, faz um barulho dos diabos, mas acelera menos que uma lambreta), o resto está OK. A França é um bom país, o segundo melhor do mundo para se viver, segundo a ONU, e no ano que vem tem Copa do Mundo aqui. É um ótimo lugar para se fazer uma Copa, bem melhor que os Estados Unidos.

Problema mesmo, só o trânsito de Paris. Para vir até aqui, é preciso atravessar a cidade até chegar à autoestrada. Trinta quilômetros em uma hora e meia. E a gente reclama de São Paulo. Só que em Paris, olha-se para um lado e vê-se a Torre Eiffel ao longe; forçando a vista, as luzes de Champs Elysèes. Em São Paulo, tem o rio Tietê de um lado e um Singapura do outro. É uma diferença considerável. No mais, são três horas de asfalto liso e estradas sinalizadas, vilarejos com floreiras nas janelas e campos de trigo, girassóis e milho. Isso tudo descansa a vista e a alma. Esqueço até o frio e a chuva, Miami é outro mundo, o Brasil também.

CANADÁ (15.06.1997) – O melhor país do mundo

Eu ia contar hoje a epopeia, talvez epopeia seja um exagero, a aventura aérea para se chegar a Montreal, quarta-feira passada. Até Nova York, é um voo normal, avião grande, horas intermináveis, comida meia-boca, filme que já vi, nada de novo. É preciso parar nos Estados Unidos para vir ao Canadá, pelas companhias aéreas brasileiras. No aeroporto JFK a gente pega uma conexão, normalmente de empresas canadenses.

Até aí tudo bem. Passaporte, bagagens, alfândega, check in. Mas havia uma informação, não confirmada, de que o avião que a gente ia pegar até Montreal não era propriamente um Boeing. Somos um grupo de jornalistas brasileiros, que nos anos Senna tinha mais de 20 profissionais. Quarta-feira, na fila do check in, éramos cinco. Dois já estavam no Canadá e outro pegou um carro em Nova York e foi dirigindo.

Um deles morre de medo de avião pequeno. E lá fomos nós para o portão de embarque. Não havia avião nenhum no “finger”. Lá embaixo, um teco-teco de 34 lugares, impulsionado a hélice. Eu, que não tenho o menor problema com aviões, iniciei o terrorismo psicológico. O tempo está ruim (estava um sol danado, na verdade), esse negócio é antigo, tem uns 30 anos, olha só o nome do avião!, Saab-Scania, esses caras só fazem carro e caminhão, não vamos chegar nunca!

E o cara (não vou dizer o nome) não queria embarcar. Vamos de carro. Vamos mudar o voo. Nada disso, respondia eu, se formos vamos todos juntos. No mínimo, dá manchete de jornal. Cinco jornalistas desaparecem nos Grandes Lagos. Dá até Jornal Nacional. Lá dentro, um charutinho, eu, nanico, batia a cabeça no teto. O medroso queria tirar as malas do bagageiro. Não tem malas, avisei. Vão em outro avião, por causa do peso.

O pânico era absoluto. Quando eu vi o piloto, avisei ao medroso que conhecia o cara, era motorista de táxi em Miami no ano passado. Antes, ao passar pelo portão de embarque, chamei a atenção para o fato de a funcionária ter me desejado boa sorte, em vez de boa viagem. Ele quase morreu.

O voo foi tranquilo. Nem sacodiu. O medroso só ficou pálido quando eu apontei uma fumaça estranha na hélice esquerda. Esse avião é legal porque voa com um motor só, disse. Não havia fumaça nenhuma, mas ele não despregou o olho da janela.

Não ia contar essa história, porque ela é banal. Na verdade, ia falar do Canadá, pela quarta vez seguida escolhido o melhor país do mundo para se viver, por um relatório da ONU. Um lugar bacana, rico, próspero, civilizado. Mas que tem um inverno de matar. Só venho ao Canadá no verão, por isso concordo com a ONU. Não sei se acharia o mesmo debaixo de neve, 32 graus abaixo de zero. Tudo bem. Se você vier um dia, escolha junho e julho. E não deixe de pegar o teco-teco. Em tempos de poucas emoções, dá até para escrever uma crônica.

ESPANHA (25.05.1997) – Depressão virtual

Ando meio deprimido nas últimas semanas e minha mulher ralha comigo, é fácil ficar deprimido em Mônaco ou Barcelona, quero ver é ficar deprimido aqui, em São Paulo. O que acontece é que as distâncias estão diminuindo muito, e o que há alguns anos significava um exílio-relâmpago, uma fuga de uma semana da nossa realidade absurda, já não é mais.

Alguns anos atrás, ansiava por entrar no avião, na volta, para pegar um jornal já velho de um ou dois dias. Eram os tempos do impeachment, do PC, do desmoronamento daquele castelo de cartas marcadas e imundas que acompanhei com tanto prazer e deleite até cair de podre.

Naqueles dias era possível se desligar totalmente daí, ou, no máximo, receber notícias incompletas, atravessadas, que só serviam para me deixar mais ávido por detalhes, louco para chegar e saber. Eu não costumava telefonar demais para o Brasil, as ligações eram mais caras, tudo era mais distante e difícil.

E foi outro dia, parece muito mais. Hoje, cinco anos depois, se tanto, chego a um autódromo pela manhã e entro na Internet. Leio tudo que aconteceu no dia anterior, recebo e engulo cada escândalo, cada barbaridade, cada cadáver, como quem toma um café e come uma rosquinha.

Envio e recebo mensagens, telefono e acho fulano no celular, não há fronteiras. É ótimo, você pode pensar. É uma droga. Quando volto, nem preciso perguntar ao amigo que não vejo há uma semana o que aconteceu nestes dias?, porque já sei, e é a mesma merda de sempre, e já não há o que falar.

Três sem-teto mortos em São Paulo, mais um sujeito que aparece dizendo que comprou resultados de jogos de futebol e participou da máfia da loteria (e quando eu chegar, segunda-feira, ele estará flanando por aí, livre como um passarinho), rebeliões em presídios de norte a sul, deputados do Acre vendendo votos, ministro esbravejando histérico, o que de novo, enfim, acontece no Brasil?
Nada.

É por isso que fico deprimido. A Internet, meu modem, meu computador que permite até ouvir rádio, o rádio que me acorda em casa, a dez mil quilômetros daqui, que dá a hora certa e a situação do trânsito, tudo isso, que poderia me aproximar do Brasil, ajudar a matar a saudade, só faz me distanciar do meu país, do país que está cada vez mais longe de ser o país que eu queria.

Depressão virtual, era o que faltava.

MÔNACO (11.05.1997) – Que se dane o Brasil

Ficar batendo na história do charme e do glamour, das mulheres bonitas, das Ferrari e dos Rolls-Royce nas ruas, do cassino, do Festival de Cannes logo ali, tudo isso já ficou velho para se falar do GP de Mônaco. E causa inveja, por isso não vou falar mais nada sobre o assunto, nem sobre a loiraça de minissaia que está passando aqui embaixo da minha janela num Aston Martin 58 conversível. Nem sobre a festa de ontem à noite no iate de um milionário árabe, para a qual fui convidado, diga-se, tudo de graça, dança do ventre, um harém à beira-mar, etc. e tal. Nem sobre o Porsche que eu aluguei — porque aqui, menos do que Porsche o pessoal olha torto.

Todo ano, quando venho a Mônaco, sou obrigado a ouvir resmungos ressentidos de amigos e conhecidos, que sempre vêm com aquele papo xarope, pô, vai pra Mônaco, vida dura, hein?, e que todos os anos, igualmente, surpreendem-se ao me ver com a mala indo para o aeroporto na terça-feira da semana da corrida, ué a corrida não é só no domingo?, por que já está indo?, vai aproveitar, não? Eu normalmente não perco meu tempo explicando que aqui tem treino na quinta-feira e respondo que estou indo um dia antes porque tenho que pagar o condomínio e as contas de luz e telefone no meu apartamento vizinho ao do Villeneuve. É o bastante para encerrar a conversa.

Outros me perguntaram com frequência, nos últimos dias, alguns mais de uma vez até, se eu iria para a Indy no Rio, e eu respondi que não, que ia para Mônaco, e fui obrigado a ouvir as mesmas gracinhas de sempre. Para não deixar passar a oportunidade, decidi dizer que entre Jacarepaguá e a Riviera Francesa optei pela segunda, o que desperta ainda mais resmungos e ressentimentos.

Mônaco é melhor que Jacarepaguá, claro, aqui não tem favela, não tem Cidade de Deus, nem PM espancando pobre, nem juiz de futebol ladrão, nem essa história malcheirosa da venda da Vale, não tem trânsito maluco ou pessoas mal-educadas jogando lixo nas ruas, essas coisas que fazem do Brasil um subpaís.

Já disse, e quem não leu fique sabendo, que odeio achincalhar o Brasil, meu país, onde nasci e vivo, de onde nunca vou sair. Mas já disse também que não vou mais perder meu tempo defendendo o indefensável, os precatórios e o salário mínimo que aumentou oito reais, os selvagens que queimaram o índio vivo ou os fazendeiros que usurparam terras a vida inteira e não admitem que tem gente que precisa plantar para viver e comer.

Quero que o Brasil se dane, minha parte faço pagando meus impostos que vão para o bolso de um gatuno qualquer e votando em quem eu acho que pode transformar isso daí em algo habitável. Enquanto isso, e enquanto puder, venho para Mônaco na hora que me der na telha. Pelo menos sacia minha vontade de viver num lugar civilizado, alguns dias por ano, que seja.

SAN MARINO (27.04.1997) – O lixo do mundo

Minha irritação com as pessoas, especialmente os brasileiros, que falam mal do Brasil sempre foi industrial. Há anos viajando pelo mundo, correndo atrás da F-1, teria até um monte de motivos para achar que o meu país é um lixo. Afinal, a F-1 só passa por lugares civilizados, a velha Europa, o Japão, a Austrália, o Canadá, até a Argentina, vizinha que a gente conhece tão pouco.

Há anos gasto meu tempo e vocabulário tentando defender o Brasil. Mas meu orgulho tem sido despedaçado ultimamente e os acontecimentos — tudo que a gente lê nos jornais, ouve no rádio, vê na TV, sente na pele — estão fazendo do Brasil um país indefensável.

Como explicar, por exemplo, Eldorado dos Carajás? OK, a miséria, os conflitos inevitáveis de uma questão agrária secular, as pessoas não entendem direito, mas aceitam com alguma comiseração. E o Carandiru? Bem, é claro que foi uma carnificina, mas você tem que levar em consideração a tensão do momento, presos violentos… dá para ser perdoado, afinal eles aqui tiveram Napoleão, Hitler, não ficam muito atrás nas barbáries históricas.

Diadema? É duro, tenta-se argumentar que é uma exceção, mesmo não sendo, todos sabemos, mas afinal é o meu país, não gosto de vê-lo sendo tratado como uma terra de selvagens, animais incontroláveis. Só que agora teve essa do índio queimado vivo, esse ato abominável, cometido por bacaninhas de classe média, cretinos filhos do poder e da elite que tudo pode e tudo faz.

Eu estou com um gosto amargo na boca. A cada duas semanas saio do meu paraíso tropical, das morenas gostosas, das praias libidinosas, do sol o ano inteiro, do Caetano e do axé, da bunda da Carla Peres, do futebol de Romário e Bebeto, para o que se imagina serem países sombrios, frios no clima e na alma, de gente que não tem amigos e se mata no metrô de Estocolmo. É tudo um grande equívoco. Sombrio é o Brasil, que queima mendigos nas ruas, que mata crianças de fome e de crack, o Brasil da polícia imoral, dos políticos imorais, de um povo cada vez mais imoral. Nós somos um país imoral.

Aqui, na Europa, as pessoas sorriem. Em Riolo Terme, uma cidadezinha onde me hospedo, ao lado de Imola, os velhinhos andam de bicicleta e tomam café expresso em mesinhas na calçada. As crianças brincam num parquinho de diversões ingênuo na frente do meu hotel, que não é a Disney dos nossos sonhos, dos sonhos medíocres do brasileiro que compra TV em Miami, um parquinho que tem um carrossel e um bate-bate. E sorriem, felizes.

Os jovens andam de bicicleta de dia, de noite, de madrugada. O policial, civil, diz bom dia e boa tarde. Não te arrebenta a cara, nem te mata, se não gostar de seu carro velho. É assim na Itália, na França, na Inglaterra, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, na Bélgica, na Áustria. E o que eles têm que nós não temos? É simples: tudo. Somos mesmo um lixo, é duro de admitir.

ARGENTINA (13.04.1997) – Globalización

Costuma-se dizer por aí que o melhor termômetro de um país são seus motoristas de táxi. Em meia hora de conversa no meio do trânsito, dá para ficar sabendo de tudo, apurar o ânimo da população, conhecer os vilões e heróis do momento, os resultados do futebol e o resumo da novela na noite seguinte. Em Buenos Aires, essa característica dos condutores é ainda mais visível. E além de não fugir de nenhum assunto, os taxistas portenhos são maniqueístas: torcem para o River ou para o Boca, amam ou odeiam Maradona, veneram ou desprezam Evita.

E foi por isso que saí tão ansioso do saguão do aeroporto de Ezeiza, quarta-feira à noite. Raramente pego táxis no exterior, mas como por aqui estão faltando carros para alugar, recorri a um desses pretinhos com capota amarela, marca registrada de Buenos Aires, para me levar ao hotel. Vi “Evita” no cinema uma semana atrás, e com o filme na ponta da língua preparei-me para uma discussão acalorada com a vítima — ou motorista, como queiram. Se ele fosse a favor, eu seria contra, e vice-versa.

Mas dei azar, como de costume. “Brasileiro?”, me perguntou o senhor dos seus 50 anos, algo calvo, bochechas rosadas. “Si”, respondi em perfeito espanhol. E antes que pudesse citar Madonna para iniciar o embate, o homem engrenou o papo, num português meio atravessado. Contou que morou 17 anos no Brasil, que a mulher é brasileira, os cunhados e sogros também, e um dos filhos, parece. Viveu em Brusque, Santa Catarina, “barriga verde!”, disse, soltando uma gargalhada.

Ainda tentei achar um gancho para malhar o Antonio Banderas, mas não deu tempo. Hugo, este é seu nome, começou a perguntar sobre o Avaí e o Figueirense, enquanto eu, em vão, tentava mudar o eixo da conversa dizendo não gostar de futebol. Ele brincou: “Também, torce para a Portuguesa!”, acusou, apontando com o indicador o glorioso escudo da Lusa pregado na minha mala de mão.

Apelei para o último recurso, que faria de mim um ser politizado e, portanto, distante das discussões cotidianas do futebol. “Soy periodista”, intimei, mais uma vez sem sotaque. Foi o fim. Ele sacou de um maço de fotos e vibrou: “Periodista! Conheço um monte no Brasil, olha aqui o Luciano do Valle, o Tatá, o Sílvio, o Pascoal, sempre levo esse pessoal da Bandeirantes pra lá e pra cá quando eles vêm a Buenos Aires, já segurei até o guarda-chuva no campo para o Ely Coimbra!” Era verdade. Estava lá o Hugo com o Luciano, com o Sílvio Luiz, com o Oswaldo Pascoal, com o Otávio Muniz e, para minha inveja, com o Rivelino e o Tostão.

Fracassei em minha ideia inicial de esculhambar e/ou santificar Evita e Madonna, Perón e Banderas, a velha ditadura militar argentina e as costeletas do Menem, Maradona e Passarella. É culpa do Mercosul. O taxista conhece o Tostão melhor do que eu e assiste ao Jornal Nacional na TV a cabo. Fala da Xuxa com a mesma intimidade que qualquer baixinho no Brasil, sabe tudo sobre Diadema e Cidade de Deus e tem opiniões bastante críticas sobre a CPI dos precatórios. Globalização, dizem alguns. Ou, como se fala por aqui, globalización.

1996

PORTUGAL (20.09.1996) – Ó pá!

Portugal, Portugal. Vinha eu para esta terra num voo da TAP e a senhora ao meu lado diz ao marido: “Ó pá, dê-me aí um outro escutador porque este meu só fala estrangeiro”, e o marido, com elogiável discernimento, não providenciou a troca do fone de ouvido e apenas disse à esposa para que mudasse de canal, e enquanto a situação não se resolvia eu pedi ao comissário para mudar de lugar.

Portugal, Portugal. Chegando a Cascais, um lindo balneário colado ao Estoril, passei diante do Jardim dos Frangos e da sapataria Expresso Rápido, e quando cheguei a um restaurante com mesas na calçada, surpreendi-me com a informação na porta: “Ar-condicionado. Dentro.” É claro.

Nada disso é mentira, e confesso que não me irrita, nem sequer desperta a tentação de contar piadas de português aos meus amigos de cá, que são muitos e amáveis, colegas de profissão, antigos funcionários do autódromo, porteiros de hotéis, todos movidos a uma lógica especial, especialíssima. Perguntei ao garçom se ele tinha bolinhos de bacalhau e ele respondeu que não, e o senhor sabe onde tem?, e ele: do outro lado da rua há um restaurante, se eles tiverem lá, tem. OK.

Pois aqui não se diz alô ao telefone, mas sim estás?, ao que se escuta do outro lado da linha estou, claro, porque se não estivesse não atenderia ao telefone, não há dúvidas quanto a isso.

Eu só não entendo mesmo a expressão ó pá!, usada no início e no final de quase todos os diálogos, sem um sentido definido, talvez equivalente ao paulistano e deselegante ô meu, mas não sei ao certo se é isso mesmo, porque sua utilização parece mais difundida e polivalente, vale para tudo. Quando vier a Portugal, ó pá, não esqueça de repetir a todo instante ó pá. Ó pá pra lá, ó pá pra cá, e vamos em frente, afinal viemos todos daqui, meu amigo.

ITÁLIA, Monza (06.09.1996) – O cachorro e o policial

Andei fazendo as contas e conclui que de 89 para cá vim à Itália 12 vezes. São duas corridas por ano, uma em Imola e outra em Monza, e estive na maior parte delas. Sempre desembarcando no aeroporto de Malpensa, que fica a uns 50 quilômetros de Milão, aqui do lado, uma cidade interessante, cheia de gente elegante, com um trânsito caótico e uma absoluta ausência de ruas paralelas. É o melhor lugar do mundo para se perder, depois de Roma da Lapa.

É engraçado descer em Malpensa. A Itália, como se sabe, é muito parecida com o Brasil, no que tem de bom e ruim. O mau-humor dos policiais que checam o passaporte, por exemplo. Para evitar problemas, normalmente eu me fantasio de jornalista especializado em F-1 assim que saio do avião: boné da Ferrari, camiseta da Williams e dezenas de adesivos pregados na mala de mão, da Minardi, da Jordan e até da Forti. Mesmo assim, a primeira pergunta, meio resmungada, em italiano, é: “O que você veio fazer aqui?”
À resposta óbvia, vem a réplica: “É a primeira vez na Itália?” Os carimbos não deixam dúvidas, mas o policial do lado de lá do guichê se recusa a identificar as marcas que provavelmente ele mesmo deixou nas folhas do meu passaporte alguns meses atrás.

Passada esta barreira, vem a fila da alfândega. Enquanto as bagagens rodam na esteira, um pastor alemão vai de passageiro em passageiro, arfando, seguro por um soldado do exército que fica batendo nas malas e dizendo “cheira aqui”, “agora aqui”. Se o cão late, meu amigo, pode esperar pelo pior.

É sempre o mesmo cachorro, e todo ano ele late para a minha mala. Creio que o animal em questão foi treinado para farejar drogas, mas todo ano implica com a minha mala, embora eu não use drogas e se usasse não carregaria na mala, depois de assistir “O Expresso da Meia-Noite”. Ultimamente tenho procurado não trazer nem perfume para não magoar o faro delicado do pastor alemão, que acredito ser naturalizado italiano.

Depois que ele late, como todos os anos, vou para a salinha e o policial, também sempre o mesmo, pergunta se eu fumei maconha antes de embarcar e é claro que respondo que não. Não e ponto final. Uma vez fui fazer gracinha e disse que jamais levaria drogas numa viagem de avião, de trem quem sabe, e o cara não gostou. Revistou até minhas cuecas e não encontrou droga nenhuma, quer dizer, não a que ele imaginava, mas deixa pra lá.

Agora só volto à Itália em maio do ano que vem, para o GP de San Marino. Vou descer no mesmo aeroporto e já penso em trazer um osso, quem sabe um pacote daquelas comidas de cachorro que os fabricantes garantem ter gosto de bife. Ou talvez traga um bife de verdade. Tudo para que pelo menos os latidos do cãozinho não sejam em vão. Quero ver a cara dele, do policial, ao abrir a mala e achar uma peça de alcatra. Ou vou preso, ou fico com o cachorro.

BÉLGICA (23.08.1996) – No caminho, as batatas

Diz meu amigo inglês Eric Silbermann que a Bélgica é aquele país que só serve para ficar no meio do caminho. Para ir à França, os alemães passam pela Bélgica. Os franceses, quando querem ir à Alemanha, fazem o mesmo. E nesse trajeto se empanturram de batatas fritas com maionese. E se perdem, também, apesar do tamanhinho do país, porque na Bélgica se falam duas línguas, o flamengo e o francês, e até os nomes das cidades são diferentes nos dois idiomas. Procure Liège, por exemplo. Não vai achar. Mas se seguir as placas para Luik, você chega lá.

Civilizada e pacata, a Bélgica é o alvo predileto dos franceses, que têm por seus nativos o mesmo apreço intelectual que nós, brasileiros, dispensamos aos portugueses. Contam, os franceses, que o belga antes de dormir coloca um copo d’água cheio e outro vazio no criado-mudo, porque à noite ele pode acordar com sede — ou não. E que os belgas donos de padarias, ou pasticeries, como queiram, são meio atrapalhados, porque se você pede uma baguete sem manteiga eles dizem que a manteiga acabou, pode ser sem margarina?

Mas os belgas têm um grande mérito, o de terem inventado as batatas fritas. Consta que foram os americanos os primeiros a desvendar os dotes culinários do tubérculo ao assá-lo numa fogueira, mas nunca imaginaram que pudessem cortá-lo em tiras e fritá-lo, dada a complexidade do processo. Hoje a América reverencia a guloseima, ainda mais se acompanhada de um belo hambúrguer, este uma invenção alemã.

Quando venho a Spa-Francorchamps, denominação errônea, porque não existe uma cidade com esse nome e sim duas, distantes 20 quilômetros entre si, a primeira Spa e a segunda Francorchamps, me hospedo num vilarejo vizinho, de batismo Malmedy. Spa é mais legal, tem termas e cassino e uma vida noturna muito agitada, que só acaba lá pelas oito horas. Da noite, mesmo, e sendo verão com o sol a pino. Malmedy dorme mais cedo ainda. Se os marcianos do Independence Day aterrissassem nesta região depois das onze concluiriam que a Terra é um planeta inabitado com curiosas formações rochosas em forma de casinhas com floreiras nas janelas.

Nos dias da corrida, a vida ganha outro ritmo e os restaurantes de Malmedy, os dois, que chamamos carinhosamente de “truta” e “italianinho” já que seus nomes são um mistério, fecham mais tarde, aguentam uma gente estranha e barulhenta que fala um idioma incompreensível e discute uma porção de assuntos. Ultimamente, qualquer coisa, menos Fórmula 1. Como diz outro amigo meu, a Fórmula 1 é muito legal, o que estraga são as corridas.

HUNGRIA (09.08.1996) – Tentações

Budapeste é uma daquelas cidades cheias de tentações proibidas. O fim do comunismo, a queda do Muro e todas aquelas coisas que faziam do mundo muito mais divertido do que ele é hoje levaram a Hungria à perdição. Há cassinos, muitos, e mulheres, muitas, em bares suspeitos, muitos também.

Os nomes das casas noturnas não deixam dúvidas sobre seu conteúdo: Pink Pussycat, Dolce Vita, Caligola e Aphrodite são algumas delas. Oficialmente, boates. As meninas dançam e tiram a roupa enquanto você toma uma cerveja. Depois elas sentam à sua mesa, você paga uma champanhe, gasta os tubos, não consegue se comunicar porque elas só falam húngaro e o resto você sabe, é linguagem universal, a mais antiga das profissões etc.

E joga-se muito também, só em dólar. Fui a um cassino ontem à noite, o Las Vegas. Eles tiram sua foto na entrada, pedem o passaporte e desejam bom divertimento. Nada de boa sorte. Arrisquei U$ 50 numa mesa de pôquer e irritei o crupiê porque apostava muito pouco. Perdi tudo e fui embora sem gastar nenhum tostão a mais e amaldiçoando o jogo, as roletas e o black jack. E perdi só cinquentinha, que minha mulher não saiba. Tem gente que deixa a casa, o carro e as roupas. É meio deprimente, esse negócio de cassino. Há uma sensação de que todos são inimigos entre si e sorrir para a mocinha que troca as fichas não pega bem. Falar com ela, então, nem pensar.

A maioria das grandes cidades do Leste Europeu, depois de 89, seguiu pelo mesmo caminho. A mãe Rússia fechou as torneiras, os empregos públicos nas enormes estatais começaram a rarear e as pessoas se viraram do jeito que deu. Para gerar dinheiro, nada melhor que a indústria do turismo e dela fazem parte os cassinos. Por tabela, a prostituição aumentou, ou pelo menos escancarou-se, e é uma realidade visível em Praga, Bucareste ou Varsóvia, em Moscou ninguém faz nada sem a máfia local e por aí vai. Marx bem que avisou.

Mas não pense por isso que Budapeste é uma terra de ninguém, embora para meu gosto já tenha McDonald’s e Nike demais, uma agressão ao passado da Cortina de Ferro, com seus espiões, seus mistérios e seu charme austero. Ao contrário, é uma cidade alegre e maravilhosa que merece ser visitada por sua arquitetura encantadora, seus castelos e igrejas, o Danúbio, que não é azul, suas termas e piscinas públicas, seus Trabant e seu ar cinzento da periferia onde o proletariado, um dia, achou que poderia ser feliz. E talvez tenha sido, mesmo.

ALEMANHA (26.07.1996) – A Norma DIN
Se você vier à Alemanha um dia, vai perceber que os caras só usam o mesmo tipo de letra em placas, na sinalização pública, nas fachadas dos estabelecimentos comerciais, nos painéis de ônibus e em quase todos os logotipos. E também que em todas as estradas a distância entre as faixas e os olhos-de-gato é sempre a mesma, e que nas horas cheias, no rádio, para tudo para o noticiário. E o locutor lê sempre assim: Frankfurt – primeiro-ministro tem dor de barriga; Ancara – explode bomba e mata 200 pessoas; Nova York – cai avião e mata todo mundo; Atlanta – nadador alemão bate recorde mundial, tudo sempre no mesmo tom.

Tudo por aqui é padronizado por um negócio que se chama Norma DIN, sendo DIN uma sigla para Deutshland sei-lá-o-quê, um treco que normatiza tudo, das letras às distâncias, passando pelos equipamentos obrigatórios nos carros, pelos dispositivos de segurança das panelas e pelas medidas dos cinzeiros.
É até legal, mesmo porque lendo o manual do meu DKW, que como se sabe é um carro de origem alemã, descobri que ele está perfeitamente de acordo com as exigências da Norma DIN, e portanto não é por culpa da fumaceira do meu motor dois tempos que mal dá para respirar em São Paulo. Se aqui pode, por que não aí? Ah, meu carro é de 1962 e a Norma DIN era diferente, foi atualizada, vai dizer você, e eu respondo que isso é detalhe.

Mas o alemão, de fato, não consegue viver se não tiver normas a respeitar. O pessoal brinca, diz que alemão é o português que aprendeu a fazer contas, uma evidente maldade, mas a verdade é que eles são rígidos demais e pouco maleáveis ao que a gente conhece por jeitinho, jogo de cintura, coisa de brasileiro. Não, isso o alemão não tem. Basta ver a seleção deles jogando bola, durões, quadrados, mas extremamente eficientes.

E é isso que é a Alemanha, um país eficiente em tudo, que foi destruído por uma guerra há cinquenta anos e em tão pouco tempo se reergueu de maneira assustadora. Hoje os caras fazem aqui os melhores carros do mundo, têm Porsche, BMW, Audi e Mercedes, e acho que isso basta, vivem chegando à final da Copa, se enchem de medalhas nas Olimpíadas e ainda fazem uma baita salsicha gostosa e uma cerveja que vou te dizer um negócio. Tudo graças à Norma DIN, a bíblia germânica, que mete o bedelho em tudo e diz como as coisas devem ser feitas. É meio autoritário, mas funciona. Não se esqueça da Norma DIN quando você vier para cá um dia. É uma das formas de se entender a Alemanha, os alemães e o medo que a Europa tem desse pessoal.

INGLATERRA (12.07.1996) – Viagem’s diário

Na Inglaterra, como se sabe, é tudo ao contrário. A começar pelos carros, os únicos do mundo em que o motorista senta no banco do carona — li isso em algum lugar, não tem muita graça. Aliás, não são os únicos. No Japão é assim, na África do Sul idem, na Índia também, acho que nas Malvinas.

Mas não são só os carros, os diferentes. A língua também é toda invertida. Casa do João, por exemplo, é John’s house, e não house of John, como seria mais lógico. Roda esquerda (do carro) é left wheel, traduzindo, esquerda roda, e não wheel left, afinal a roda é mais importante que o esquerdo, e portanto deveria ser priorizada na sentença, mas não é.

Em compensação, xícara de chá, que por analogia deveria ser tea’s cup, é cup of tea, traduzindo, xícara de chá. Alguém sabe explicar o motivo? Não, como também é inexplicável o fato de os ingleses terem inventado o futebol e jogarem tão mal, como também é inexplicável se escrever inexplicável com x e não com s, enquanto inesperado é com s e não com x. Culpa do latim, do grego e do romano, parece.

E por falar em chá, diz a revistinha da Benetton, aquela mesma que avacalhou com São Paulo quando teve corrida no Brasil, que inglês não sabe fazer comida, e que por caridade o resto do mundo concedeu aos britânicos o título de melhores fazedores de chá do mundo, posto que a única habilidade exigida é ferver a água, algo não muito complicado.

Mas são espertos os ingleses, ao contrário do que deixam transparecer. A rainha Elizabeth, por exemplo, com aquela carinha de pamonha, é durona, tirou o título de Sua Alteza Real da Lady Di, que finalmente se divorciou de outro pamonha, o pamonha Charles. Diana vai ganhar trinta milhões de dólares para se divorciar. É espertinha. Queria mais, setenta milhões, mas as altezas reais bateram o pé nos trinta mesmo.

E o Charles quer se casar de novo, com aquela horrorosa da Camila Parker-Alguma-Coisa, não lembro o sobrenome, só lembro a cara de buldogue dela, e os ingleses estão apavorados com a possibilidade de ela virar rainha, é preferível uma pamonha a um buldogue, pamonhas são simpáticas.

E tomara que a rainha não leia isso tudo, porque se ela souber que a chamei de pamonha não me deixa mais entrar na Inglaterra, e isso vou lamentar, porque gosto daqui, gosto de chá, gosto do fog, só não gosto da cerveja quente. Mas não corro esse risco. Quero ver é alguém do serviço secreto traduzir pamonha para a rainha. Nem falando ao contrário.

CANADÁ (14.06.1996) – Meia aliche, meia mussarela

Um dos aspectos interessantes de vir ao Canadá é ter que se valer dos serviços de companhias aéreas dos Estados Unidos. Como quase nunca vou aos Estados Unidos, divirto-me muito com as particularidades que envolvem uma viagem ao país, mesmo que seja de passagem, como é meu caso. Na fila do aeroporto, por exemplo, ainda no Brasil, a funcionária da companhia, seja qual for, leva a cabo um interrogatório curiosíssimo antes de despachar a bagagem.

Pergunta se por acaso eu estou levando alguma bomba na mala, e naturalmente a resposta é não, apenas os fios, o explosivo vou comprar lá, brinco, o que não é recomendável. Quem fez a sua mala, pergunta, e eu respondo que foi minha empregada, e ela quer saber se a moça em questão tem vínculos com alguma organização árabe ou se é filiada à seita do reverendo Moon, e eu respondo que não, que já faz tempo que ela chegou do Iraque, nem usa mais o véu, apesar de ainda rezar voltada para Meca, e isso também não é recomendável dizer.

Na entrada do avião, outro funcionário me questiona sobre a mala onde está meu computador. É minha bagagem de mão, digo, e ele pergunta onde ela esteve nos últimos minutos, e eu digo que esteve na minha mão, visto que é uma bagagem de mão. É legal desconcertar esse pessoal acostumado a perguntar a mesma coisa centenas de vezes por dia e a receber respostas temerosas e graves, como se alguma grande conspiração contra a América estivesse sendo tramada em Guarulhos ou Mogi das Cruzes.

Uma vez dentro do avião, as coisas não são assim tão ruins. É verdade que num avião de 300 lugares há menos de 15 para fumantes, parte da campanha doentia que os americanos fazem contra o cigarro e os fumantes, mas com algum jogo de cintura dá para driblar a histeria e acender unzinho lá no fundo. E o voo em geral é agradável, dá até para telefonar para casa do aparelho instalado na poltrona, e muitas vezes o jantar é nada menos do que uma pizza, isso mesmo, pizza. Nunca tinha comido pizza em avião, meia aliche, meia mussarela.

Pena que desta vez vou ficar pouco no Canadá, um país generoso, bonito, culto e agradável. Segunda-feira pela manhã me mando para Miami, onde mora meu irmão mais velho, que vejo uma vez por ano. Lá chegando, vou responder às mesmas perguntas sobre bombas e drogas, tendo que acrescentar que nunca fui nazista e jamais estive pessoalmente com Hitler ou Fidel Castro. Faz parte dos cuidados que Bill Clinton toma para manter a paz em seu território. Gosto de Miami, tem bons bares e saborosas asinhas de frango com cerveja gelada. O único problema é que ninguém fala inglês, e meu espanhol está cada vez pior.

MÔNACO (17.05.1996) – Já foi melhor

Tem uma boate aqui em Mônaco que, dizem, é o point da moda, é onde se deve ir para ver e ser visto, essas babaquices. Chama-se Dimes, e como eu nunca vou a festa nenhuma nesse paiseco de esnobes, resolvi que iria lá sexta à noite. Pensei em pintar o cabelo de vermelho e vestir um paletó verde com gravata amarela, para aparecer, mas me aconselharam a não ser tão discreto, que pega mal.
Aí abro o jornal, o simpático Nice-Matin, e leio que uma cerveja na Dimes custa 200 Francos. Dá 40 dólares. Uma cerveja. Não é preciso dizer que não fui à boate e que me limitei a uma pizza no calçadão da Rue Massena em Nice, a 20 km do Principado, a alguns metros do hotelzinho de quinta em que estou hospedado.

De quinta, sim, porque não pense que é fácil arrumar um quarto no Hermitage ou no Hotel de Paris, com suas sacadas debruçadas sobre o porto de Mônaco e as ruas por onde passam os pilotos de F-1. Fácil é, basta ter cinco mil dólares para torrar em quatro dias só em diária. Difícil é arranjar tanto dinheiro assim.

Mas há suas compensações. No ano passado, por exemplo, quando embarquei em Paris, soube que a Sharon Stone estava no mesmo avião, indo para o Festival de Cinema de Cannes. Acho que era mentira, mas sou daqueles que acha que verdade é aquela mentira bem contara, e por isso coloquei no meu currículo, no item “viagens internacionais”, que voei com a Sharon Stone, sem entrar em maiores detalhes.
Este ano estava a Cher no meu avião, e desta vez é verdade mesmo, porque eu a vi. Magra, branquela, envelhecida, vestida de preto e chupando pirulito de uva. Um horror, mas era a Cher. Vai pro currículo também. Tinha um outro ator, que não sei o nome, e um bando de japoneses que compraram todos os estúdios de cinema de Hollywood e foram para Cannes conferir o lucro ou prejuízo de seus negócios.

Em Mônaco, mesmo, pouca gente importante. No ano passado veio o Maradona. Agora, parece que o Al Pacino ficou de aparecer, mas ainda não vi. A família real só dá as caras no domingo e olhe lá, porque eu soube que o príncipe Albert, depois da largada, sai do seu camarote à prova de bala e sobe no apartamento de um amigo para ver a corrida na TV, voltando só na hora de entregar os troféus. E a princesa Stephanie se casou com um segurança, está cheia de filhos e isso a

ITÁLIA (03.05.1996) – Mucca Pazza

Quando ouvi a expressão na TV, quase morri de rir. Era um programa para adolescentes, chamado “Planet”, em que a entrevistadora perguntava a alguns jovens — e jovens são iguais no mundo todo — se eles não tinham medo de comer hambúrguer por causa da mucca pazza. Mucca pazza!

Mucca pazza é vaca lôca, my brother. Estamos na Itália, e aqui também o pessoal tem medo de bifes por causa da vaca lôca inglesa. E não sei bem porque estou falando na mucca pazza, mas foi o que me fez sorrir pela primeira vez segunda-feira à noite, quando cheguei da Alemanha.

Estive na Itália pela primeira vez em 89. Quando desci do trem em Roma, tarde da noite, fui correndo telefonar pra casa. Tirei o fone do gancho e nada de linha. Pi-pi-pi, sinal de ocupado. Orelhão quebrado, pensei, e troquei de aparelho. De novo a mesma coisa. “Questo orecchione no funziona!”, gritei. Todos os telefones do país estavam quebrados.

Na verdade, descobri depois, o telefone dá a linha na Itália quando está ocupado. Não é brincadeira. Computadores enlouquecem aqui. Só nos dois primeiros dias deste GP de San Marino, dei assistência técnica a um português, um croata, um canadense e um inglês para que seus textos cruzassem o éter e chegassem às redações.

Este último, um londrino meio esnobe, eu sacaneei de propósito e até agora ele está ditando suas matérias pelo telefone para um editor enfurecido. É um chato que me disse, quando fui prestar meus serviços gratuitamente, que esperava esse tipo de dificuldade de transmissão em países como o Brasil, nunca na Itália. Cretino. O problema é que o modem de um computador só disca um número quando consegue identificar uma linha. Descobri isso alguns anos atrás e há um comando secreto que emburrece a máquina, fazendo-a discar mesmo se estiver tocando o Luiz Melodia do outro lado da linha.

A Itália é onde o brasileiro se sente em casa quando está na Europa. Aqui pode parar o carro sobre a faixa de pedestre e passar o sinal vermelho. É de bom tom xingar alguém quando se comete tal infração. Quase atropelei um velhinho no início da semana em Bolonha e percebi que quem tinha o direito de reclamar era eu, e não ele. Curioso, este país.

E tem o futebol, o Milan, a Juve, as corridas de bicicleta, o macarrão delicioso e a pizza nem tanto. Pizza boa é em São Paulo, na Vila Mariana. E a língua, linda, sonora, sentimental. E a Ferrari, claro. Se há um país que merece mesmo mais do que um GP, é a Itália, onde vaca lôca é mucca pazza, a melhor definição para bovinos malucos que já ouvi em toda minha vida.

ALEMANHA (26.04.1996) – Só falta falar

Não me considero um jeca, mas confesso que às vezes fico boquiaberto com algumas coisas que vejo cada vez que desembarco na Europa. Cheguei quarta-feira à tarde ao aeroporto de Frankfurt e fui pegar meu carrinho alugado para vir a Eifel Land, a região onde fica Nürburgring, 180 km a oeste. Desta vez dei sorte. Reservei o mais barato de todos, mas já não havia nenhum disponível e jogaram na minha mão uma charanga, como diria, da hora.

A marca não interessa. Claro que se fosse um Audi ou um Porsche iria aproveitar para me gabar, mas não é o caso. O carro em si, lindão, é verdade, não tem a rigor nada de espetacular. Só o rádio.
E que rádio, rapaz! Você liga e aparece a frequência no painel do carrão, ao lado da temperatura externa e da hora certa. Não tem dial, ponteiro, essas coisas do arco da velha. Até aí, nenhuma surpresa. Já vi algo parecido antes. Só que de repente começaram a aparecer no painel algumas coisas estranhas. Primeiro “Cramberries”. Depois, palavra por palavra, “Ode to my Family”. Profundo musicólogo que sou, liguei os fatos, apurei os ouvidos e conclui que o bendito do rádio, naquela estação, a FFH, diz por escrito no painel o nome da música que está tocando. É o primeiro rádio para surdos que vejo em toda minha vida. Você pode não ouvir, mas vê.

E não para aí. Outras emissoras informam pelo painel o clima em várias cidades da Europa e as condições das estradas. Fiquei sabendo pelo painel, por exemplo, que em Estocolmo a temperatura era de 19 graus e que a Autoestrada 3, que me levava a Nürburgring, tinha trânsito “gut”, ou seja, bom, fluindo legal, sem congestionamentos. Logo depois entrou um número de telefone que eu não entendi direito se era disk-erótico, telepizza ou comida chinesa, porque estava ultrapassando um caminhão naquela hora.

Cada rádio dá uma informação diferente. As mais pobrezinhas inscrevem apenas o nome no dial, ou no painel, melhor dizendo. Deduzi que o equipamento transmissor da emissora tem que ser compatível com o aparelho receptor do carro. Os sinais são emitidos por ondas de rádio e convertidos quando passam pela antena. É uma tecnologia até simples, mas nem por isso menos genial.

Minha surpresa foi tão grande ao perceber que meu rádio fazia tudo isso, que exclamei: “Só falta falar”. Claro que é uma grande idiotice, já que falar é a única coisa que os rádios sempre fizeram, desde os tempos de Marconi. Sorte que não tinha ninguém perto para ouvir. Ou será que o dito cujo escuta, também? E se escutar, será que entende português?

ARGENTINA (05.04.1996) – Mucho legal

Estou começando a entender esse negócio de Mercosul. Na verdade, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai são tudo farinha do mesmo saco. Tem só uma pequena diferença de língua, nada más. E não é preciso muito esforço para entender o que os caras falam. Coca-Cola é Coca-Cola (e não Cueca-Cuela, como pensam alguns); Maradona é Maradona; bom dia é buenos dias, mas se você disser bom dia eles entendem do mesmo jeito. Há que se tomar cuidado apenas com todavía, que é ainda, e empezar, que é começar. Em Bagé também se diz empeçar, e Bagé fica no Brasil.

Cheguei a Buenos Aires tentando falar um bom espanhol, mas desisti depois do primeiro “tchau” que recebi em troca de um elaborado “adiós”. Agora estou dizendo “oi” e “obrigado”, para não complicar. Decidi assumir minha brasilidade depois de assistir a um noticiário bilíngue na TV, com o presidente Fernando Henrique batendo um animado papo com Carlos Menem diante de uma apresentadora argentina e uma brasileira que diziam “besos para Brasil” e “um abraço pra toda a galera de Buenos Aires”. Una esculhambación.

As semelhanças entre Brasil e Argentina são enormes, maiores do que sempre pude imaginar. Nos carros, por exemplo. Aqui tem Gol, Verona (que se chama Orion), Versailles (é Galaxy), Pointer, Uno e Prêmio (que é Duna). Tudo feito em Betim e São Caetano. Creio até que nossa maior frustração em relação aos portenhos, origem da rivalidade histórica entre os dois países, é o fato de termos convivido com Opalas por mais de 20 anos, enquanto eles o fizeram com os Ford Falcon, muito mais hermosos, digo, charmosos. Mas ambos, Opala e Falcon, acabaram.

Nós tivemos Pelé, eles Maradona. Temos o Flamengo, eles o Boca. Roberto Carlos e Julio Iglesias. Mar del Plata e Guarujá. Senna e Fangio. Buenos Aires e São Paulo. Picanha e chorizo. Leonardo Pareja e rebeliões a granel nos presídios argentinos. É tudo igual. Até na malandragem. Aqui hai que se tomar alguns cuidados. Os melhores hotéis pedem que os hóspedes anotem sempre o número de matrícula dos táxis que vão usar. “Tenemos muchos picaretas”, me disse o porteiro do meu, com incrível desenvoltura. “Picaretas?”, perguntei. “Si, picaretas, como dijo Luiz Inacio”. Ah, entiendo, respondi.

É tudo igual. Escutei até axé music no rádio traduzida para o espanhol. A letra diz “yo quiero te abraçar, te besar, peciso de usted”, sem a menor cerimônia. Argentino é o brasileiro que fala espanhol e tem cabelo comprido. E as meninas usam saias mais curtas do que aí. É tudo mucho legal, de verdad.

Eu, 150 – 13/04/2001

Quando eu trabalhava na “Folha”, a gente tinha a mania de fazer títulos como esse. “Senna, 65”, para dar o número de poles do cabra. Ou “Romário, 45”, os gols do Baixinho. Parecia chique. Na verdade, era fácil e cabia em qualquer espaço.
Bem, vou usar a fórmula. Afinal, neste fim de semana completo a barbaridade de 150 GPs de F-1 como jornalista. O primeiro foi em Jacarepaguá, 1988. Não sabia direito nem para que lado os carros viravam. Antes, minha relação com a F-1 limitava-se a algumas corridas vistas das arquibancadas, o que era bem mais divertido. Principalmente no Rio.

E tinha de ser bem em Imola. O 100º, se bem me lembro, foi em Buenos Aires. Fui me dar conta do número à noite e, creio, me pagaram um bife de choriço. Mas tinha de ser em Imola o 150º, esse lugar esquisito onde todos nós, jornalistas que cobrem a F-1, passamos por coisas do arco da velha.

Mas aquilo foi há sete anos. Se eu disser que Imola, hoje, me traz lembranças amargas, que me deprime, me joga para baixo, estarei mentindo. Já passou, essa é a verdade. No primeiro ano depois de maio de 1994, fui à Tamburello fazer uma reportagem e não me senti bem. Quase fui preso tentando pular o alambrado para dentro da pista. Achava, na época, que todos os anos as imagens e as situações do acidente viriam à tona. Impressão reforçada no ano seguinte, acho, quando um sujeito inaugurou uma estátua de péssimo gosto – a coisa, essa sim, mais deprimente que já vi. Parece que ainda está lá, do lado interno da curva, mas nunca mais voltei para conferir.

Bem, já passou.

Imola, na verdade, é um lugar simpático que não merece ser estigmatizado por nada. A região é lindamente melancólica e sempre gostei de vir à Itália. Come-se bem sempre, o vinho da região é maravilhoso, as pessoas são hospitaleiras, simpáticas, amistosas e divertidas.

Cobri meu primeiro GP de San Marino em 1991. Desde então, fico sempre no mesmo lugar, o Albergo Franca, em Riolo Terme. É uma cidadezinha vizinha de Imola, para o lado oposto de Bolonha, o que me livra do tráfego. O único ano em que não me hospedei no Franca foi 1994. Não significa nada, mas vale o registro.

O Franca é de um casal que virou amigo, Paolo e Patrizia. Andrea, o filho, eu vi de colo. Hoje, com11 anos, é quase maior do que eu, o que não chega a ser nenhuma vantagem.

Paolo torce para a Juventus e tem guardados os ingressos dos principais jogos a que assistiu. Esteve na Copa de 1982 na Espanha, também, e todos os anos nos sentamos para tomar uma sambuca à noite e falar do time do Telê contra o time do Paolo Rossi. Há alguns anos, ele teve de fazer um transplante de rim. Foram dias duros. Fazia hemodiálise, vivia derrubado. Hoje esbanja saúde e alegria. Fico feliz.
Patrizia, a mulher, é quem me serve um capuccino todas as manhãs. Uma simpatia, está sempre querendo saber dos meus filhos, vivo prometendo fotos que nunca trago. Sou meio desligado nessas coisas. Nesses dez anos de Franca, o máximo que trouxe para Paolo e Patrizia foi um boné da Portuguesa e uma foto de meu filho mais velho que, na verdade, estava comigo para matar a saudade e acabei deixando com eles.
Riolo Terme. É quase uma aldeia, que só funciona a partir de maio com suas pensões simples ocupadas por velhinhos aposentados que vêm para cá passar o verão. Em setembro, Paolo e Patrizia fecham o Franca e vão viajar. Nunca estiveram no Brasil. Depois da corrida, fecham o hotel até a primeira semana de maio e, no intervalo, pretendem conhecer Fortaleza, Recife e Salvador. Boa escolha.

Quando vim a Imola pela primeira vez, lembro que entre um treino e outro na sexta resolvi dar um pulo numa pracinha próxima ao autódromo. Parei numa sorveteria e tomei um “gelato” de creme com calda de morango. É uma de minhas lembranças mais doces da F-1. Naqueles tempos estava começando, não tinha muitos amigos e passava muito tempo sozinho. Eu era mais ingênuo e me encantava em vir à Europa.

O encanto, com tudo, vai acabando com o tempo. É uma pena. Acho que todos nós um dia fomos melhores do que somos. O sorvete de creme com calda de morango também.

* A Colina da Paixão, marco de Imola, em foto do ano passado.

Onde fica Meca? – 15/03/2001

Não conheço muita gente que cite a Malásia como um de seus possíveis roteiros turísticos do futuro. Há destinos mais clássicos, como Egito, Grécia, Nepal, Tibete e Disneylândia. Depois de vir três vezes até aqui, compreendo a omissão. Não, nada contra a Malásia e seus simpáticos malaios, ao contrário. É um país decente, digno, que cresce visivelmente, tem uma economia aquecida e eficiente em algumas áreas, como petróleo e borracha, e está longe de ser miserável como o Brasil.

Mas é que para vir até tão longe, talvez seja melhor conhecer o Vietnã, ou o Camboja. São países que têm uma história um pouco mais conhecida, passaram por guerras recentes e foram mostrados no cinema em filmes inesquecíveis. A Tailândia, aqui pertinho, também é divertida. “Ana e o Rei” se passa lá. A Malásia, diferentemente, sempre foi muito discreta. E, como seus vizinhos, tem um problema insolúvel: o calor.

Faz calor demais aqui. É quase insuportável. O sol frita os miolos. O asfalto parece que está derretendo. É um inferno. Claro, há o que ver. As torres da Petronas no centro de Kuala Lumpur, por exemplo, os prédios mais altos do mundo. Ou o litoral sul, que no século xis-vê-alguma-coisa foi colonizado por portugueses. Há praias belíssimas, também, mas de praia o Brasil está bem servido. Não, definitivamente, não recomendo a Malásia. A não ser que você seja um fanático incorrigível por Fórmula 1. Nesse caso, venha. O autódromo é uma beleza. Não há nada parecido com Sepang no mundo.

Sepang que, por sinal, fica ao lado do exagerado aeroporto internacional de Kuala Lumpur. Bonito, estalando de novo. Em abril, inauguram um trem expresso que liga o aeroporto à cidade em 28 minutos. São mais de 50 km de distância. Algo que podia ser copiado em São Paulo. Pegar avião em Guarulhos é um calvário.

E foi de lá que saí na segunda-feira, a bordo de um Jumbo da British Airways. Depois de 11 horas de voo até Gatwick, um dos aeroportos de Londres, mais uma hora e meia de ônibus até o outro, Heathrow, e um novo Jumbo, da Qantas, até Cingapura. Mais três horas de aeroporto e, finalmente, mais um Jumbo, da Malaysia Airlines.
Foram três Jumbos em dois dias. É um belo avião. E nenhuma companhia aérea brasileira tem Jumbo. A Varig vendeu os que tinha. Não dá para acreditar num país que não tem Jumbos. Enquanto não houver um Jumbo no Brasil, continuaremos sendo o que somos, é o que sempre digo.

Resort e aviões – Até o ano passado, eu ficava num baita hotel aqui na Malásia. Chamava-se Mines Beach Resort. Tinha praia particular, artificial, chalés e luau. Mas ficava longe pacas. Neste ano, enfiei-me no Pan Pacific, onde ficam todos os pilotos, a 10 minutos do circuito. É mais prático, mas quando abro a janela, em vez da praia, vejo aviões.

O hotel, no entanto, tem suas vantagens. Uma mesa de pebolim em um de seus restaurantes, por exemplo, da qual já falei em outra coluna. Foi lá que encontrei o Button batendo uma bola ontem à noite. E outra: no teto do meu quarto, há uma seta verde num dos cantos. Ela indica a direção de Meca. A Malásia, oficialmente, é um país muçulmano, embora outras religiões sejam professadas sem problemas. Os islâmicos rezam diariamente voltados para Meca, mas num quarto de hotel, sem bússola, é difícil saber para que lado Meca fica. Pertinente, a seta.

Faltou falar do meu carro, obsessão essa minha, de falar de carros. Peguei um Proton Wira branco. Num primeiro momento, pensei que era o mesmo do ano passado, uma baita coincidência. Mas só há Protons Wira brancos para alugar em Kuala Lumpur. Quando chego ao estacionamento do autódromo para ir embora, pego qualquer um. Aperto o chaveirinho e vejo qual acende a lanterna e apita. Aquele que abrir a porta é o meu. Se não for, não tem problema.

Proton é um carro feito só na Malásia. Há duas décadas, o governo malaio resolveu criar uma indústria automobilística no país, importou tecnologia, montou fábricas e sugiu a Proton, que domina o mercado local. São feinhos, mas andam. E o ar-condicionado funciona bem, sem o quê seria impossível viver nesta terra.

GP Tour: A mais feia de todas – 27/02/2001

Pode parecer maluquice atravessar o mundo, encarar 19 horas dentro de aviões, chegar à Austrália e ter como único assunto para um texto que se pretende turístico — isso aqui se chama GP Tour, certo? — a feiura de uma credencial.
Bem, que seja perdoada a maluquice, mas vou ser obrigado a falar da minha credencial, deixando as belezas da Austrália para amanhã.

Um horror. É a FIA que emite as permanentes da imprensa escrita e todo ano, confesso a futilidade, fico ansioso para pegar a minha. Afinal, vai me acompanhar por oito meses, e é conveniente que com ela eu tenha um bom relacionamento.

Não terei, nesta temporada. O cara pago para desenhar nossos passes caprichou nesta temporada. A credencial sequer faz menção ao campeonato para o qual estou credenciado. Tem uma foto mandraque do Hakkinen no meio de um monte de microfones e só. No verso, um 3 x 4 meu distorcido, o mesmo que forneço à FIA há três anos. E nada mais. Nem um carrinho, nem uma mísera referência à F-1, exceto um minúsculo logotipo, também no verso, invisível a olho nu.

Não que seja afeito a desfilar de credencial pendurada no peito por aí. Mas às vezes acontece, e ajuda quando se vai a um pequeno comércio local atrás de adaptadores para o computador. Embora eu tenha todas as conexões possíveis, porque elas mudam de país para país, sempre esqueço em casa e sou obrigado a sair correndo para comprar novas quando chego a algum rincão distante para cobrir uma corrida. O que faz de mim um colecionador respeitável de conexões para telefones.

Com uma credencial compreensível, até o mais bronco dos vendedores sabe que está falando com alguém que trabalha na F-1, o que pode render um desconto, uma piadinha, um bom papo, depende do humor — meu e do vendedor. Mas, com essa, prevejo dias difíceis pela frente. O cartão magnético nem forma de cartão tem. É curvo nas bordas. E, laranjão, lembra alegoria de Carnaval. Dá até vergonha. Vou andar com essa credencial escondida sob a camiseta. Talvez no ano que vem façam uma coisa mais apresentável.

Dia 1– É difícil aproveitar um dia, por mais lindo que seja, mesmo que numa cidade exuberante como Melbourne, depois de passar tanto tempo em aviões e de enfrentar diferenças de fuso que chegam a 16 horas. Escrevo às 4h da quarta-feira, 14h da terça no Brasil. Nem sei direito em que dia estou, o sono ficou numa poltrona qualquer da econômica da Qantas e possivelmente vou dormir até meio-dia amanhã (ou hoje, sei lá).

Cheguei a Melbourne pela manhã aqui, peguei um carro horrendo (já vi carro feio; o meu Toyota verde bateu todos os recordes, combina com a credencial) e, como de costume, errei o caminho para o hotel. Todo ano erro, mas pelo menos cometo o mesmo erro e fica fácil de corrigir. OK, você quer uma dica turística, lá vai. Para as primeiras horas em Melbourne, antes de descansar do voo, dê um pulo na praia de Santa Kilda, pertinho do Albert Park. Tem um grill simpático, o Santa Kilda Beach, come-se uma boa porção de batatas gratinadas com sour cream e toma-se uma boa Fosters gelada.

Depois, um breve passeio pela praia, cheia de gays e mocinhas fazendo topless. É uma praia bonita, apesar do vento meio gelado. Prefiro Porto Seguro, mas vá lá. À noite, se você conseguir se manter acordado até a noite chegar, vale um pulinho no Crown, um complexo que junta hotel, cassino, lojas e restaurantes, à beira do rio. Tem um restaurante particularmente bom, o The Duck, onde dá para tomar até caipirinha de vodca, porque no ano passado ensinei o barman a fazer, enquanto esperava minha mesa. Não é uma caipirinha inesquecível, porque eles não têm limões Taiti aqui, mesmo o Taiti sendo bem mais próximo da Austrália do que do Brasil. Mas dá para encarar.

Comi carne de canguru no ano passado e pretendo repetir amanhã. Depois conto se estava bom. A batata assada que jantei hoje não merece grandes referências.

Cesta básica – É preciso se preparar para viagem tão longa, e na minha bagagem de jornalista tarimbado pode faltar tudo, menos o computador e alguns livros. O computador felizmente veio e está funcionando apropriadamente. É um Ferrari (Acer, na verdade, mas como Acer é o nome do motor Ferrari da Prost neste ano, considero lícito estabelecer algum parentesco entre meu laptop e os motores da F-1).

Dei sorte com os livros. Comprei “Autópsia do Medo”, de Percival de Souza, e “Pilatos”, de Carlos Heitor Cony, no aeroporto. Não comecei a ler o primeiro, mas o segundo já está no fim. É a coisa mais escatológica que já li, e revela uma veia humorística do Cony que eu não conhecia. Morro de inveja do Cony. Ele escreve como eu gostaria de escrever um dia. Mas não se pode ter, nem ser, tudo na vida.

Carnaval – Para terminar, algumas palavrinhas sobre o Carnaval. Não vi nenhum desfile do Rio, porque quando a primeira escola entrava na Sapucaí eu entrava num Boeing apertado para Buenos Aires. O trajeto é esse, São Paulo, Buenos Aires, Auckland e Melbourne.

Mas isso não lamento. Não me perdoo, mesmo, de não ter visto meus dois moleques fantasiados de palhacinhos em seu primeiro bailinho de Carnaval. Foi domingo, no Guarujá. E eu atrás de carros de corrida. Palhaço sou eu.

Os azares de Schumacher na Áustria – 03/05/2002

Das 17 pistas que formam o atual calendário da F-1, o alemão Michael Schumacher só não venceu em uma: em Zeltweg, na Áustria, local da próxima etapa do Mundial, no dia 12. O ferrarista costuma dar muito azar no circuito: ele se envolveu em confusões nas quatro vezes em que disputou a corrida. Em 1997, ultrapassou sob bandeira amarela; em 1998, saiu da pista e destruiu o bico; foi tocado por trás em 2000 e saiu da pista com Montoya em 2001. Outro detalhe: desses quatro GPs, em dois ele largou atrás do seu companheiro de equipe (Irvine, em 1997, e Barrichello, em 2000).

Confira a extensa lista de azares do tetracampeão na Áustria:

1997 – Depois de treinos ruins, Schumacher largou apenas em nono, imediatamente atrás de seu companheiro de equipe, Eddie Irvine. Foi sua pior colocação no grid naquela temporada, junto com a da Itália. Michael partiu bem e completou a primeira volta na sexta colocação. Com o pit stop de Jan Magnussen (Stewart) na 26ª passagem, Schumacher subiu para quinto. Barrichello (também da Stewart) parou nos boxes duas voltas depois e o ferrarista pulou para quarto. O alemão passou Frentzen sob bandeira amarela na 38ª volta e assumiu a segunda colocação com o pit de Jacques Villeneuve. Schumi, porém, foi punido com um stop&go e despencou para nono. Passou Barrichello e Damon Hill (Arrows) nas últimas voltas e terminou em sexto. Villeneuve, seu grande rival na briga pelo título, venceu e ficou apenas um ponto atrás do alemão no campeonato.

1998 – Em uma classificação que alternou chuva e pista seca, Schumacher conseguiu apenas o quarto tempo. A primeira fila foi formada por Fisichella (Benetton) e Alesi (Sauber). O alemão largou bem e na primeira volta já pressionava Mika Hakkinen (McLaren), o líder. Michael, porém, forçou demais e cometeu um erro na 17ª passagem, quando ainda era o segundo. Ele destruiu o bico de sua Ferrari e foi obrigado a dar uma volta inteira com o carro avariado. Caiu para 16º e foi se recuperando até terminar em terceiro, atrás da dupla da McLaren. O pódio só foi possível porque a Ferrari mandou Irvine dar passagem ao alemão.

1999 – Não correu porque estava se recuperando do acidente sofrido em Silverstone. O alemão quebrou a perna direita e ficou três meses sem disputar um GP de F-1.
2000 – Ficou em quarto no grid, imediatamente atrás de Rubens Barrichello, e foi tocado por Ricardo Zonta (BAR) na primeira curva. O alemão tentou colocar seu carro no meio da pista para paralisar o GP, mas a direção de prova foi rápida e permitiu que a corrida continuasse.

2001 – Conquistou sua primeira pole na Áustria, mas largou mal e caiu para terceiro. Subiu para segundo com a quebra de Ralf e partiu para cima de Montoya, o líder. Schumi forçou a ultrapassagem na 16ª volta (foto) e ambos saíram da pista. O alemão caiu para sexto e se recuperou até cruzar a linha de chegada em segundo. Foi nesta corrida que a Ferrari obrigou Barrichello a ceder sua posição ao companheiro de equipe. O brasileiro só fez isso na última curva.

Montadoras dizem ter plano para assumir a F-1 – 14/04/2002

Cinco representantes das montadoras de automóveis envolvidas na F-1 se reuniram em Imola no sábado para definir os destinos da categoria. Após o encontro, o grupo liderado pelo principal executivo da Fiat, Paolo Cantarella, informou que continua de pé a ideia de criar um campeonato próprio a partir de 2007, quando termina a validade do Pacto da Concórdia. O Pacto é um documento assinado por todas as equipes que rege o Mundial de F-1 em seus aspectos comerciais, políticos e econômicos.

As montadoras já formaram uma empresa para fazer o novo campeonato, a GPWC (Grand Prix World Championship). Mas ela foi criada, no ano passado, em um momento político diferente do atual. As fábricas estavam preocupadas com o domínio comercial da F-1 pelo grupo alemão Kirch, dono de 75% dos direitos comerciais da categoria.

O Kirch quebrou na semana passada, porém. Agora, sua participação na F-1 está nas mãos dos bancos credores do grupo. As montadoras disseram que aceitam negociar com os bancos. “Vamos examinar qualquer proposta, desde que sejam consistentes em seus objetivos”, falou um dos dirigentes na Itália. Caso não haja negociação, a “nova F-1” sai do papel e a F-1 atual vira mico nas mãos dos credores de Leo Kirch.

O grupo das montadoras, representado por Burkhard Goschel (BMW), Jurgen Hubbert (Mercedes), Wolfgang Reitzle (Ford), Patrick Faure (Renault) e Luca di Montezemolo (Ferrari), anunciou as decisões tomadas em Imola em quatro pontos: 1) as fábricas querem um envolvimento maior no campeonato; 2) querem oferecer melhores condições econômicas para as equipes; 3) querem um Mundial estável em termos de regulamento e finanças; e 4) querem ampla cobertura mundial por TV aberta.

A F-1 do futuro seguirá essas diretrizes, seja com esse nome, seja como GPWC. Qualquer negociação com os credores de Kirch incluem esses itens. O grupo já se reuniu com as equipes existentes em novembro e vai fazer outra reunião no verão europeu para lhes apresentar detalhes contratuais e propostas econômicas. As montadoras informaram também que já têm pré-contratos com 23 circuitos e promotores de corridas para seu campeonato.

Resumo: ou a parte de Kirch vai para as mãos das montadoras, que assumem a F-1 de vez, ou a F-1 como se conhece hoje morre e um novo campeonato, organizado e dirigido pelas fábricas de automóveis, nasce em 2007. Com Ferrari, McLaren, Williams, Renault, Jaguar e quem mais quiser se submeter a suas regras.

O autódromo que se vinga – 05/04/2002

Não, Barrichello não ia ganhar a corrida. Não, o destino não é cruel com ele. O cara é piloto da Ferrari, a melhor equipe do mundo, ganha cinco milhões de verdinhas por ano, é bem casado, tem um filho de seis meses gorducho e sorridente, mora num belo apartamento no Morumbi, tem outro em Mônaco, só anda de carrão. Não, quem tem tudo isso não pode reclamar do destino.

Mas vai ter azar assim no inferno. Corrida no Brasil, para Rubens, seria melhor se não existisse. Poderia ser transferida para Cali, Cidade do México, Buenos Aires, Ciudad de Est. Ou para o Suriname, Tegucigalpa, Santa Cruz de La Sierra, Guaiaquil, Caracas, Havana. Tudo que pode dar errado para Barrichello dá errado em Interlagos.

Enumerando, a partir de sexta-feira: o pneu furou na primeira volta da primeira sessão de treinos livres; o controle de tração pifou na mesma sessão, ele rodou e perdeu mais de 20 minutos de treino; no sábado, o sinal ficou vermelho na hora em que saía dos boxes e a punição foi a perda do melhor tempo na classificação; no treino que definiu o grid, o carro entrava em ponto morto sozinho; e domingo, na corrida, estava em primeiro quando a “vovó” quebrou, pane hidráulica, seja lá o que for isso. Pára tudo de funcionar, esses carros de F-1 são muito bestas, qualquer coisa quebra.

Em dez GPs do Brasil, Barrichello só chegou ao final de um, faz tanto tempo que nem lembro como foi, em 1994. Nove abandonos, sete deles por má-vontade dos carros. No ano passado, bateu estrepitosamente em Ralf, mas estava piradinho porque o carro titular quebrou quando ele se dirigia ao grid. E em 96, no outro abandono que pode ser debitado de sua conta corrente, rodou na frente da maior arquibancada de Interlagos depois de largar em segundo e encher a torcida de esperança.

Rubens poderia ficar gripado todo final de março. Ou pedir para não correr no Brasil. O desânimo a cada desgraça, a volta a pé aos boxes diante dos olhares sádicos de um público que não perdoa ninguém (foto), as explicações para o inexplicável, os olhos vermelhos, o consolo da família, a dor de abrir os jornais no dia seguinte, tudo isso deve, em português dos mais cristalinos, encher o saco do rapaz.

Ele costuma dizer que, apesar de tudo, correr em Interlagos é um prazer, é o melhor fim de semana do ano. Não é. É uma droga, dá tudo errado. Tem maldição, sim. Não sou de ficar com dó de ninguém, ninguém precisa da minha compaixão. Mas domingo confesso que deu pena. Não, o destino não é cruel com Barrichello. Cruel é esse circuito que insiste em fazer sofrer um menino que cresceu trepando nos seus muros para ver carros de corrida, sonhando com o dia em que iria brilhar ali. Rubens deve ter quebrado alguma vidraça, matado algum passarinho, envenenado algum vira-lata quando brincava de calças curtas no autódromo. Interlagos está se vingando. Só pode ser isso.

Dá-lhe, Dart! – 29/03/2002

Tem gente que me acha doido por escrever sobre losangos quando o mundo está discutindo círculos. Não tiro a razão desse pessoal, que insiste em ler minhas bobagens por anos a fio. Lembro que na véspera da decisão do Mundial de 2000, em Suzuka, fiz uma coluna sobre clássicos japoneses, entre os quais o Ultraseven, o Ultraman, o National Kid e uma miniatura do robô de “Perdidos no Espaço”, que não tem nada de japonês, mas comprei no Japão, e acabou entrando de gaiato na história.

É o caso desta semana, semana de corrida no Brasil, semana que promete um duelo daqueles entre Schumacher e Montoya, semana de mais um capítulo na conturbada história de Barrichello na Ferrari, o drama de ser preterido pela equipe no GP de seu país, os dramas passados numa prova que nunca lhe sorriu com um resultado decente, um podiozinho que fosse, o jejum de pilotos brasileiros em Interlagos, a dengue à espreita noos 100 mil pneus espalhados pelo circuito, as ondulações da pista, as áreas de escape asfaltadas, as novas regras que entram em vigor, essas coisas.

E eu resolvo falar da Dart.

Dart? Que diabos é Dart?

Dart é o Gama da F-1, a equipe que ninguém quer deixar correr, uma espécie de pária nesta categoria milionária de gente de queixo empinado que não gosta de dividir o bolo, que não admite estranhos, que só sorri quando vê um maço de notas de cem dólares sendo acenado a uma distância que permita enxergar “In God We Trust” no papel esverdeado.

Dart é a Phoenix, a ex-Prost. Resumindo: a Prost faliu em janeiro, no começo de março um grupo inglês chamado Phoenix Finance Ltd foi à Justiça Francesa, viu o que tinha no espólio para vender, comprou dois carros da massa falida, o projeto do carro de 2002 e, garante o grupo, o direito de participar do Mundial de F-1.

O dono da empresa, Charles Nickerson, telefonou para o amigo Tom Walkinshaw, proprietário da Arrows, perguntou se arrumava uma meia-dúzia de mecânicos, alguns motores, e se dava para montar uma equipe. Dava, aparentemente, e mandaram tudo para a Malásia.

A equipe nova chegou a Sepang com o nome Phoenix, convocou dois pilotos, Tarso Marques e Gastón Mazzacane, mas nem conseguiu entrar no autódromo.
Agora, ao que parece, a Dart está no Brasil. O Tarso Marques me contou que os carros vieram para cá, e que o time esperava correr. Não correu, nem tem espaço no autódromo, não tem box, vai enfiar os carros e os mecânicos onde? No kartódromo?

Não sei de onde vem o nome Dart, nome novo, escolhido nesta semana, ainda segundo o Tarso. A equipe não tem cores, patrocínios, nada. Dois carros, motores Ford que estavam encostados em algum canto, e vontade de correr.

Pode parecer picaretagem. Tem todo o jeito de ser, na verdade. E a F-1 não é muito chegada a picaretagens depois de experiências ruins com times como a Andrea Moda, a Forti Corse, a Lola, a Life, a Simtek, a Pacific, nomes que surgiram nos anos 90 e desapareceram sem deixar rastros.

OK, compreendo, é preciso preservar a credibilidade do esporte, é uma competição de alto nível que movimenta muito dinheiro, etc. e tal. E depois tem o risco de colocar carros inseguros na pista, que podem machucar alguém.

OK, compreendo tudo isso. Mas poderiam pelo menos deixar os carros entrarem no autódromo. Colocar os capacetes nos pilotos, tirar retrato, dar credencial. Dart, o nome é legal. Lembra o Dodge Dart do meu pai.

Sou doido, mesmo, tem corrida em Interlagos e fico falando da Dart, que nem existe direito. Não faz mal. Alguém precisa defender os pobres e oprimidos. Dá-lhe, Dart, resista! Não capitule! Se não der aqui, manda os carros para Imola. Uma hora dá certo.

Música em Interlagos
É curioso passear pelos boxes de Interlagos para aferir o gosto musical dos mecânicos nos dias que antecedem o GP. A Jordan, por exemplo, coloca em suas disqueteiras sucessos do pop inglês, como Tears for Fears, Duran Duran e Culture Club, daquele sujeito esquisito que parece mulher. A BAR manda ver com Marisa Monte e Daniela Mercury. A Minardi tem uma quedinha por clássicos do rock dos anos 70 e 80. Ninguém toca rap, nem funk, nem pagode, nem sertanejo, felizmente. Williams, Ferrari e McLaren ficam no silêncio. Coisa mais sem graça.

Mulheres em Interlagos
Não sou tão velho assim, mas sou do tempo em que a corrida do Brasil acontecia em Jacarepaguá e todo mundo adorava. Os pilotos chegavam dias antes e se esbaldavam na praia e nas piscinas dos hotéis na Barra e em São Conrado. Motivo? Mulheres, claro. No grid, as mocinhas de preto, patrocinadas pela John Player Special, eram um estouro com seus shortinhos minúsculos. Nem precisa ir tão longe. Nos últimos anos, aqui mesmo em Interlagos, teve Feiticeira, Sheila Mello, Tiazinha, as proibidas do Funk, Monique Evans, Luana Piovani, Thais Araúja, Maria Fernanda Cândido, Isabel Fillardis. Neste ano não vi ninguém. Está todo mundo na Casa dos Artistas.

25 de agosto de 1991 – 24/08/2001

Está fazendo dez anos. Eu já era quase um veterano em cobertura de Fórmula 1, chegava ao meu 17º GP. Spa-Francorchamps, Bélgica. Fui via Paris, porque iria ficar na Europa uns 40 dias, até a corrida de Barcelona. Fiz o leasing de um Renault 19 a diesel e para esse tipo de aluguel o ponto de partida tinha de ser Paris. Da capital francesa até Spa são mais ou menos 400 km, um passeio bonito e tranquilo.
Naquela época, a Philip Morris reservava para os jornalistas quase todos os chalés de Val d”Arimont, um hotel em Malmedy (veja no final do texto quem são os que aparecem na foto), perto do circuito. Tempos de Ayrton Senna, sabe como é, nós brasileiros éramos bajulados por todo mundo. Pagávamos, claro, mas muito menos do que se fizéssemos a reserva diretamente com o hotel.

Ninguém ligava para a Jordan. Senna fazia um belo campeonato, mas Mansell se aproximava perigosamente e esse era o eixo da cobertura jornalística em 1991. A Jordan nada mais era que uma curiosidade, num ano cheio de episódios pitorescos. Uma mulher já havia corrido pela Brabham, Giovanna Amati, sendo substituída por Damon Hill, filho de peixe, um cara já passado dos 30 anos em quem ninguém apostaria um tostão.

Tinha também a Lambo, uma equipe que quase nunca passava da pré-classificação, havia a Arrows, que começou a temporada com motor Porsche e trocou depois para Ford, algumas equipes como Coloni, Larrousse, Dallara e AGS, que divertiam muito aqueles que chegavam à pista cedinho na sexta-feira para ver de perto a degola dos carros que não participariam nem do treino para a formação do grid.

A F-1 era, enfim, repleta de exotismos. Nada menos do que 44 pilotos participaram de alguma forma daquele Mundial, alguns deles, como Moreno, por três equipes diferentes – Jordan, Minardi e Benetton. E em meio a tantas excentricidades, Michael Schumacher era apenas mais uma. Iria correr no lugar de Bertrand Gachot, um belga que estava na cadeia na Inglaterra depois de se envolver numa briga de trânsito com um taxista em Londres.

Pouca gente conhecia Schumacher. Mesmo os jornalistas alemães tinham poucas informações sobre o rapaz. Sabia-se que ele tinha feito muito sucesso no kart, como tantos outros, e que havia conquistado o título alemão de F-3. Na equipe da Mercedes no Mundial de Marcas, era menos badalado que seus companheiros Frentzen e Wendlinger.

Como a disputa Senna x Mansell era o que realmente interessava, poucas linhas foram dedicadas àquele Schumacher nos jornais do mundo inteiro, e a maioria dos repórteres acabou optando pelo lado engraçado da história, a tradução aproximada de seu nome, que quer dizer, grosso modo, “sapateiro”, ou “fazedor de sapatos”.
Seria apenas mais um, ainda mais com um nome desses. A F-1 já tinha ídolos em número suficiente para imaginar que um sujeito obscuro que estava tapando buraco numa equipe estreante pudesse vir a ser alguma coisa. Em 1991 o time de cima da categoria tinha Senna, Berger, Mansell, Patrese, Piquet, Prost e Alesi, além de alguns jovens bastante promissores, como Hakkinen, Herbert e Lehto, e outros já consolidados como Brundle, Alboreto, Johansson, Capelli, Gugelmin, Boutsen e De Cesaris.

Não, não seria aquele alemão a vingar, a Alemanha não tinha tradição de formar bons pilotos, o país da F-1 era outro, o Brasil, e o cara não merecia muita atenção mesmo. No fundo, a história de Gachot em cana era bem mais interessante que a do sapateiro. Sua prisão levou os pilotos a usarem camisetas pedindo sua liberdade e até o asfalto de Spa foi pichado pelos torcedores belgas.

O alemão ficou em sétimo no grid, arrancando alguns sorrisinhos aqui e ali, olha lá, até que o sapateiro é bom, mas todos esquecemos dele logo na primeira volta, já que seu carro quebrou. E Schumacher só foi ser lembrado de novo em Monza, de surpresa, quando a Benetton comunicou que estava mandando Moreno embora. E mais uma vez o alemão foi coadjuvante num caso que tinha uma vítima clara, o brasileiro coitadinho demitido em troca dos dólares da Mercedes.

Eram os dólares da Mercedes, e não Schumacher, que estavam tomando o lugar de Moreno na Benetton, na avaliação precipitada e evidentemente equivocada daqueles que acompanharam o caso e o levaram ao público pelos jornais e microfones.

Schumacher não precisou de muito tempo para abrir os olhos dos incautos, porém. Terminou o GP da Itália em quinto, à frente do novo companheiro Nelson Piquet, tricampeão, um dos grandes de todos os tempos. Faria mais um sexto em Portugal e outro na Espanha e no ano seguinte venceria sua primeira corrida.

Dez anos se passaram. Aliás, faz dez anos da estreia amanhã, 25 de agosto. Não conheço ninguém que em uma década apenas tenha conseguido tanta coisa em sua profissão. Entrevistei Schumacher naquele ano em Portugal, no motorhome da Benetton, com hora marcada. Notei uma certa timidez no rapaz mas, ao mesmo tempo, grande segurança no falar, no olhar nos olhos do perguntador. A timidez, talvez, pelo fato de eu ser brasileiro, do país de Senna, a quem ele confessou idolatrar. Lembro de ter perguntado o que ele esperava da F-1, a fama ou o dinheiro, algo assim. Ele me disse que nem uma coisa, nem outra. Apenas vencer.
Sabia do que estava falando, o sapateiro.

Ninguém aguenta mais – 06/06/2001

Há muito mais nesse triângulo amoroso mal resolvido McLaren-Newey-Jaguar do que dinheiro, apenas. Na sexta-feira, entre um comunicado confirmando um contrato e outro negando o anterior, confesso que não conseguia enxergar nada além de dólares na parada: o projetista fazendo leilão, querendo ganhar cada vez mais, sabedor que é de seu talento – como disse Bobby Rahal, o cara “achou” mais velocidade em carros de F-1 nos últimos anos do que qualquer piloto ou fabricante de motor.

Mas a informação que a “Autosport” inglesa publica nesta quinta-feira, garantindo que Newey vai mesmo é dar um pé na F-1 para desenhar barcos, fez com que eu repensasse o assunto. Para concluir que Adrian está é de saco cheio da vida que leva. Pelo que diz a revista, Newey pretende abrir mão da extensão de seu contrato com a McLaren, agora previsto para terminar em 2005, para tomar outro rumo já em agosto de 2002.

Dá para imaginar alguém tão vitorioso como Newey, uma celebridade cercada de paparicos e propostas por todos os lados, largar o mundo maravilhoso e milionário da F-1 para desaparecer no mapa? Dá. Basta viver a F-1 de perto para não só entender uma decisão dessas, como apoiá-la. Se eu fosse rico o bastante para fazer o mesmo, já teria feito.

Falando assim, parece que odeio a F-1. Não é exatamente isso. Ainda gosto de corridas de automóvel. Digamos que a F-1 como é hoje é que está um porre. E não estou me referindo à falta de competitividade, ou de ultrapassagens, ou de belas corridas. Refiro-me ao ambiente, ao “way of life” dessa gente afetada que se sente no centro do universo, do mecânico ao segurança do autódromo, do assessor de imprensa ao goiaba que trabalha de garçom com uniforme de equipe.

É tanta frescura e cerimônia, que a F-1 está se tornando algo quase insuportável. Embora seja lícito admitir que talvez nós, jornalistas, sejamos os que menos sofrem com isso. Basta não estressar. OK, o Bernoldi só pode falar às 16h17, e não às 16h13? Dane-se, que não se ouça o Bernoldi. Barrichello está em meeting com seus engenheiros e só vai poder dar entrevista daqui a duas horas? OK, azar dele e dos leitores. Montoya não pode conversar com ninguém no paddock, só com hora marcada? Beleza, abraço Montoya, quando der a gente se fala. É preciso passar a credencial por sete controles eletrônicos até chegar à sala de imprensa? Sem problemas, cadê a catraca? Há quem ainda se irrite com essas coisas. Eu, não mais. Faz tempo.

O caso de um sujeito como Newey, porém, é infinitamente mais dramático. A cada quebra, a cada derrota, a cada centésimo perdido numa volta, a cada reclamação de um piloto, a bomba estoura na sua careca, precoce para quem tem só 42 anos. Se eu não entrevistar o Barrichello não acontece nada. Mas se o carro do Coulthard não sair do lugar na largada, o mundo desaba. As pressões sobre essas peças-chave da F-1 são cada vez maiores, e vêm de todos os lados. Na posição que Adrian ocupa, não basta ser bom; é preciso ser o melhor de todos sempre, é preciso ganhar, ganhar, ganhar.

Esse é o espírito da competição, vai dizer você. Pode até ser. Mas não dá para se dedicar 100%, o tempo todo, num meio em que o ritmo de trabalho e as exigências são tão intensos, como disse nesta semana John Barnard. Por mais talentoso que seja o sujeito, sua vida útil diminui drasticamente. É desumano. O mesmo pode-se dizer dos pilotos e seus séquitos, cada vez mais impacientes, estressados, infelizes, cheios de compromissos, obrigados a bajular patrocinadores e autoridades, um verdadeiro pé no saco. Não têm casa, família, amigos. Vivem em função de uma imagem, medem palavras, não podem dizer certas coisas, ficam irritados com qualquer bobagem, fazem segredo até da cor da cueca que estão usando. Como se o bom andamento do universo dependesse de seu comportamento exemplar e reprimido.

Por isso admiro Villeneuve, que não dá a mínima para ninguém. Chega ao autódromo, senta no carro e sai dirigindo, o mundo que se dane. E por isso que, se Newey disser que vai abandonar as corridas para desenhar barcos, ou para cultivar rosas no interior da Inglaterra, vou aplaudir de pé. Já fez mais do que devia, aguentou o que não precisava.

Quanto a mim, continuo enquanto tiver paciência e bons amigos nesse meio que, a cada dia que passa, se torna mais hostil e aborrecido.