OPA – 06/02/2009

Eu sou um baita mentiroso com meus filhos, e eles, claro, já perceberam isso. Tanto que o mais novo já cunhou uma reação básica para minhas cascatas, que eram monumentais quando eles eram bem pequenos (“o papai um dia parou um trem com a mão esquerda para salvar um cachorro que estava no trilho”, ou “o papai um dia pousou um avião porque o piloto desmaiou”) e hoje são mais sutis (“cheguei em segundo na corrida com meu Lada”, ou “a Portuguesa vai contratar o Cristiano Ronaldo”).

A elas, as cascatas, o caçula diz só “opa”. Que significa um monte de coisas: “Pai, não sou mais criança, você não segura nem trenzinho elétrico”, ou “pai, você tem medo de altura, se o piloto desmaiar você morre do coração antes de ele cair no chão”. Assim, com três letrinhas, ele economiza o verbo e me deixa com cara de tonto.

Nesta semana, pingou no noticiário especializado a possibilidade de criação de uma nova equipe de Fórmula 1. O que se sabe até agora: vai se chamar USF1, terá sua sede em Charlotte, perto da turma da Nascar, seus pilotos serão americanos e os empreendedores são Peter Windsor, jornalista inglês, e Ken Anderson, engenheiro americano. A “equipe” tem até site, http://www.usf1.com, para quem quiser tentar. Aparece só o logotipo e mais nada.

Windsor, que pessoalmente é uma mala sem alça, sempre quis ter uma equipe de F-1. Amicíssimo de Nigel Mansell, foi dirigente da Williams em meados dos anos 80. Tentou comprar a Brabham em 1989, mas não deu certo. Processou os vendedores, ganhou uma grana, e no ano seguinte foi nomeado chefe do escritório que a Ferrari montou na Inglaterra sob o comando de John Barnard.

Sempre com Mansell, seguiu para os EUA em 1993, quando o inglês foi correr na Indy. Ficou algum tempo na América e voltou à Europa onde, desde 1998 conduz as entrevistas unilaterais da FIA na F-1, além de trabalhar para a Fox, emissora de TV a cabo. É metido que só ele. Já trocamos umas cotoveladas e microfonadas em entrevistas mais concorridas.

Anderson, por sua vez, tem currículo mais extenso no esporte a motor. Começou no motocross americano, se especializou em amortecedores, chegou a trabalhar na Penske em cargo de chefia, depois foi para a Ligier, passou pela Onyx e, de volta aos EUA, ocupou várias funções em diversas equipes grandes e pequenas da Cart e da IRL, cujo regulamento técnico ajudou a escrever, quando a categoria nasceu. Aí foi parar na Nascar.

O mundo vive uma crise financeira de arrepiar os cabelos e o epicentro dela está justamente nos EUA. Nenhum dos dois tem dinheiro para montar uma equipe de F-1, arrumar patrocinadores vai ser uma tarefa dificílima, e pensar um time sediado na América do Norte, onde nem corrida tem mais, me parece uma maluquice. Mas há quem garanta que vão fazer, e com as bênçãos de Bernie Ecclestone.

Como diz meu moleque mais novo, opa.

FELICIDADE NA AMÉRICA – 13/07/2006

Um de meus esportes favoritos nos últimos anos foi malhar Juan Pablo Montoya. Nada pessoal, apenas reflexões sobre a intrigante personalidade desse rapaz que, em 2001, chegou à F-1 falando grosso, fazendo imaginar que finalmente alguém poderia bater de frente com Schumacher e transgredir um pouco no ambiente asséptico da categoria.

Não dá para negar que, sim, Montoya transgrediu. Mas do jeito errado. Não com ultrapassagens e atuações mirabolantes, mas com bobagens fora da pista – como engordar feito um doido, bater em cinegrafistas, discutir com jornalistas, ofender colegas e não dar bola para os patrões. O mal explicado acidente do ano passado, que o tirou de duas corridas no primeiro ano de McLaren, é o maior exemplo. Alegou que caiu jogando tênis, mas estava mesmo era fazendo trilha de motocicleta.

Montoya é um sujeito curioso, porque alterna momentos divertidos e afáveis com surtos de falta de educação que esbarram na grosseria. Amigo de verdade na F-1, salvo engano, fez só um: Barrichello, que sempre o tratou como “Gordo”. Agora, de supetão, larga tudo para morar nos EUA, onde foi feliz, sim, nos tempos de Indy. Conquistou título e venceu as 500 Milhas de Indianápolis, embora no seu segundo ano de Chip Ganassi tenha brigado até com a porta da garagem da equipe.

Trocar a F-1 pela Nascar, para qualquer piloto, seria sinal de decadência, mas agora vou defender Juan Pablo. Aos 30 anos e com dois filhos, de que vale viver em Mônaco e correr para uma equipe grande se o cara não se sente feliz e nem capaz de ganhar corridas? Montoya percebeu que não conseguiu ser o que imaginava que seria. Dentro de uma daquelas banheiras da Nascar, correndo quase todo fim de semana, estará longe das pressões e da empáfia da F-1.

Sim, a Nascar é um ambiente caipira e festeiro, não tem o profissionalismo e a tecnologia da F-1, parece quermesse, ou rodeio. Mas e daí? O que importa é ser feliz. Onde e como, cada um escolhe seu jeito.

DULCE LEE – 17/03/2005

Havia uma fotógrafa nos anos 70 com quem topei de frente procurando já não sei mais o quê na internet, e também não importa, porque o que encontrei foi bem melhor. Uma moça alta, bonita, moderna, além de seu tempo. Credite-se à minha ignorância a falta de informações mais precisas, já que ela, Dulce Lee, é certamente bem mais importante e conhecida do que farão supor estas linhas repletas de impressionismo vago. Dois ou três telefonemas me ajudariam a compor um perfil decente, mas muitas vezes prefiro ficar com a impressão do que com os fatos, e não seria num espaço tão curto que contaria a história desta mulher. Um livro, quem sabe? (Mais um livro que nunca escreverei.)

Dulce, de 1970 a 1976, foi presença feminina quase única na ilha viril e máscula de Interlagos, Fórmula 1 incluída. E lá fora também, porque ela não clicava apenas aqui, circulava pela Europa com a mesma desenvoltura e talento. Amiga de todos os pilotos, foi casada com um deles, Anisio Campos, o maior desenhista de automóveis que o Brasil já teve — e ainda tem, porque Anisio continua firme e forte com seus longos cabelos brancos e despejando no mundo ideias que brotam sem parar de sua mente de artista.

E é isso que é Dulce, uma artista das câmeras e lentes, que emprestou às corridas durante alguns poucos anos um olhar absolutamente particular, de estética refinada a partir de técnicas de revelação e ampliação que, até onde eu sei, não se usam mais nesta era de retratos digitais gravados em “memory sticks”. Nada contra a modernidade, mas tudo a favor do que se fazia antes. As fotos de corridas publicadas em seu blog não me deixam mentir. São pinturas.

Dulce amava carros e corridas, e foi uma espécie de fotógrafa oficial da Equipe Hollywood, um ícone das pistas brasileiras de três décadas atrás. Usava “chapéus e colares diferentes” (as aspas são de um texto dela mesma) numa época em que “corridas eram corridas de verdade”. Seu trabalho, com carros, flores ou pessoas, é um primor.

Feliz coincidência esta, de achar no emaranhado de www’s em que se transformou a vida do jornalista o olhar de Dulce sobre as pistas, na mesma semana em que ganhei o livro de Tom Wolfe com um olhar literário sobre uma corrida de Nascar de 1964. Não se olha mais para nada hoje como antigamente.

O ÚLTIMO HERÓI DA PENA – 11/03/2005

Chama-se “O último herói americano” o texto de Tom Wolfe publicado em “Radical Chique e o Novo Jornalismo” (Cia. das Letras, 2005), uma coletânea de artigos do jornalista e escritor americano que foi um dos expoentes do “new journalism”, um quase-movimento literário surgido nos anos 60 que se pretendia isso mesmo: transformar a linguagem chata e sem sal do jornalismo diário em literatura, conferir-lhe algum senso estético, aproximar o ofício de escrever para jornal de algo parecido com arte.

“O último herói” é uma grande reportagem escrita há 40 anos sobre uma corrida de Nascar disputada em North Wilkesboro, na Carolina do Norte. O local é o que menos importa, era apenas mais uma corrida da então já muito popular stock car americana, tendo como personagem central um piloto chamado Junior Johnson.

Wolfe era jovem e descolado quando foi escalado para “cobrir” a corrida. Na verdade, escrever sobre aquele mundo seria uma definição mais apropriada de sua pauta, saber quem venceu ou perdeu era um detalhe pouco relevante. O universo das corridas é que interessava.

Para quem não está habituado, o mundo da velocidade é mesmo surpreendente e cheio de histórias. Wolfe capta o espírito da coisa com maestria e graça, saca que ali brilhava “o mesmo automóvel que estava transformando a vida do homem, seu próprio símbolo de liberação. (…) Você pode comprar um carro igualzinho ao que esses malucos fabulosos pilotam toda semana com essas velocidades fabulosas, e uma parte dessa força e desse carisma é sua”.

Junior Johnson, o herói, é um caipira do sul que desenvolveu suas habilidades fugindo da polícia para contrabandear bebidas. É vivo, tem 74 anos e depois que parou de correr virou chefe de equipe, tem lá seu lugar na história da Nascar com suas 50 vitórias e mais de 120 como dono de time. Wolfe deve ter tentado entrevistá-lo e concluiu que ele só era capaz de dar três respostas a qualquer tipo de pergunta: “Hã-hã”, Hã-hã” e “Não sei”. Genial.

É uma delícia ler sua descrição de um típico autódromo americano (“O centro da pista é como o fundo de uma tigela”) e do significado das corridas: “(…) a bandeira abaixa, todo mundo no centro da pista e nas arquibancadas está de pé, enlouquecido, e, de repente, aquilo é o ambiente de uma grande orgia de tudo que é excitação e liberação que o automóvel representa para os americanos. Uma orgia!”.

Possivelmente, se fosse enviado hoje para escrever sobre uma corrida de F-1, Wolfe produziria uma peça cheia daquilo que nós, que nos achamos entendidos, chamamos de “coisa velha”. Sim, o que é novo para uns pode ser velho para outros. Talvez seu texto saísse cheio de erros factuais, dada a especificidade do tema. Talvez ele se espantasse com o comportamento dos personagens com quem esbarraria num paddock e sobre eles traçasse perfis imprecisos, julgamentos equivocados, que para os —de novo — “entendidos” soassem até ridículos.

Mas, certamente, ele produziria algo brilhante a partir de um olhar diferente, nesta era de informação tão rápida quanto de baixa qualidade, tão instantânea quanto medíocre.

Um olhar que falta ao jornalista de hoje, enfastiado com o ritmo de sua vida, dos acontecimentos, com a banalização de tudo.

O que está faltando ao mundo é olhar para ele de outro jeito, e eu adoraria ver Tom Wolfe escrever sobre F-1, para perceber o que já não percebo.

A MORTE AQUI, A MORTE LÁ – 22/02/2001

A morte de Dale Earnhardt, domingo, representou para o automobilismo americano o mesmo que a morte de Ayrton Senna para o brasileiro.

Espera aí. Dale quem? Não se culpe se nunca ouviu falar de Earnhardt, o maior nome da história da Nascar ao lado de Richard Petty, um capiau que usava botas com esporas em vez de sapatilhas e vivia de chapéu de vaqueiro. Não se culpe, afinal Earnhardt corria de Nascar, uma categoria que mundialmente falando tem a mesma repercussão que o futebol americano. Ou seja: só interessa aos EUA, é um fenômeno local, não precisa do resto do mundo para existir, não é globalizada. A Nascar, como bem definiu este Lance! domingo, não passa de uma F-1 caipira.

Mas coisa de caipira nos EUA dá muito dinheiro e geralmente arrasta multidões. É o caso da Nascar, com seus carrões que ficam se batendo em circuitos ovais. Técnica e esportivamente falando, é uma competição desprovida de importância. Em termos de mercado, no entanto, é um negócio que funciona, porque os carros se parecem com carros de verdade, e as montadoras envolvidas usam seus sucessos nas pistas para vender mais carros de verdade.

Não é isso que se pretende colocar em questão, porém, e sim a reação do público e da mídia à morte trágica de um ídolo. Earnhardt era uma espécie de Senna da Nascar, heptacampeão, vencedor de 76 corridas, um sujeito que conseguiu emprestar nos últimos 20 anos um pouco de espírito de competição a um campeonato que era pouco mais do que um encontro de fim-de-semana para fritar hambúrgueres e assar salsichas.

Sua morte, embora tenha sido notícia em todos os telejornais da América e tenha merecido manchetes em jornais, não causou lá a comoção que a morte de Ayrton causou aqui. O Brasil, em 1994, se dobrou de dor. Durante semanas, notava-se no rosto de cada um, mesmo daqueles que nunca ligaram para F-1, uma tristeza incontida. Os sociólogos que expliquem, acho até que tentaram na época, mas de repente o Brasil se sentiu menor, o brasileiro perdeu um herói e um ídolo, um irmão e um filho. Não se falava em outra coisa.

Conheço pessoas nos EUA e elas me disseram que nem de longe esse sentimento de perda irreparável foi percebido por lá. E não é difícil entender por quê. Pode-se argumentar que Earnhardt não era um Senna, mas na prática era, sim, ambos ganhavam a vida como pilotos de automóvel e morreram correndo.

Não, essa não é a explicação. Ocorre que os EUA, e o mundo civilizado em geral, têm muitos Sennas. Sennas no atletismo, na música, no cinema, na literatura, na ciência, no boxe, no tênis, no governo. O Brasil tinha um só.